O vão entre o trem e a plataforma

texto da palestra ‘o vão entre o trem e a plataforma’, na pós da puc-poa, 20/05/2016

 

 

Parte I

 

“Como se estivéssemos em palimpsesto de putas” é meu décimo romance.
Igualzinho a todos os outros.
Acho que todos meus romances apontam sempre para um ‘espaço-entre’.

 

Os ‘espaços-entre’ de conteúdo:
– Entre lugares diferentes;
– Entre gêneros;
– Entre classes sociais;
– E até mesmo entre as várias possibilidades de se entender o crime geralmente apresentado no enredo.

 

Outros ‘entres’ estão na maneira como eu escrevo. Por exemplo:
– O que vai de mim àquilo que está sendo escrito. É disso que vou falar aqui.

 

Antes de começar vou fazer um elogio a mim mesma.
Esse vocabulário que eu uso, o do ‘espaço-entre’, é do François Jullien.
Mas tem mais gente.
Se você pega o Deleuze-Guattari e os fluxos que se interrompem em territórios codificados, sempre revisitados e reestruturados.
Ou mesmo o Agambem, que mostra como é preciso haver uma distância entre o criador/pensador e o Contemporâneo, para que, ao trilhar esse espaço, possa se apreender um sentido, ainda que temporário.
Então, são muitos os que dizem que entendemos mais quando não almejamos uma totalidade, quando nos pomos no meio do fundúrcio. Ou num deserto, como quer Deleuze-Guattari, para que o pensamento possa fluir sem muitos obstáculos.
Acho que os ‘espaços-entre’ que reconheço como meus são portanto uma maneira de pensar do Contemporâneo.
Então, o elogio não é que eu tenha chegado à mesma conclusão dos filósofos citados e que, portanto, muito inteligente e culta, eu tenha passado a escrever a partir de uma ideia que adotei.
Não sou teórica. Parto da prática. Apenas reconheço a minha prática no pensamento dessas pessoas que admiro.
Então, diminuindo um pouco o elogio. Me percebo concordante com esses filósofos, mas por mero acaso.

 

A lista de ‘entres’.

 

1) Escrevo sobre fatos vividos por mim, ou vividos por outros, mas vistos ou ouvidos por mim. Não os invento. E aí está meu primeiro ‘entre’.
Vivo algo de que não esqueço, e que me foi, de algum modo, traumático. Esse algo não me é compreensível no momento em que eu o vivo. Não está passível de ser dito, representado esteticamente; como qualquer trauma, não cabe na linguagem. E  me prende num território rotulado, num momento determinado.
Aí passam-se muitos anos.
E algo no presente da minha vida me faz reexperimentar o vivido (ou visto ou ouvido) anterior, ameaçando me prender outra vez. E aí escrevo. Para ver se ando.
Então não é a representação de algo biográfico, é o próprio escrever que faz parte do biográfico. Vou experimentando, reexperimentando, à medida que escrevo. Não espelho uma realidade, faço uma cartografia dela. Vou andando, trilhando.
Para poder fazer isso, tenho de achar o exato lugar onde eu possa me ver parada no hoje, e naquuilo que fui no momento da primeira experiência travadora.
É isso o mais difícil. Achar exatamente o vão que permite que as coisas andem.
Quando consigo, tenho o narrador.
Então, o narrador dos meus livros não é uma pessoa exatamente, aliás muitas vezes sequer tem nome. É um lugar. E um lugar no meio, um ‘espaço-entre’, como diz o François Jullien. Ele não está em um ponto de vista privilegiado espacialmente, onde possa ver um ‘tudo’ que, aliás, rejeita. E também não tem privilégios em relação aos outros personagens. Sabe pouco sobre eles e o que não sabe, imagina, mente, se engana e volta atrás. O narrador não domina de nenhum modo um saber. Ele sabe, ou melhor não sabe, o que vai acontecer tanto quanto os outros personagens presentes no livro.

 

2) O segundo ‘entre’ então é o narrador no meio da bagunça. Não há mais um eu, ou duas – a que ficou parada antes e a que está parada agora. O segundo ‘entre’   é entre o narrador – que é um meio de campo das duas eus – e os fluxos que passam por ele e pelos quais ele passa. Porque se nada está estável em volta do narrador, ele também não para quieto nunca.
Vou voltar ao Contemporâneo.
Não está pronto. Não é um produto acabado. É um fazer, um fluir.
Se essa experiência de traçar, com os pés, olhos, ou dedos num teclado, uma cartografia de algo que necessário para um caminhar, e se essa cartografia, quando bem sucedida, por definição não acaba, aí incluo o leitor.

 

3) É o terceiro ‘entre’ da  lista: o ‘entre’ que fica entre o texto e o leitor.
Rejeito a codificação rígida que fecha a escrita em um território que exclui o leitor, já que essa escrita, como um caminhar, não tem foco nem fim. Também rejeito a ideia de que o leitor seja dono de outro território diferente do meu. Então, na verdade, o que estou fazendo é um convite.
Dito de outro modo, a exposição da feitura do texto estará sempre, necessariamente, lá. Pois digo que não sei o que houve, desconfio que o que houve não acabou, não tenho a menor ideia do que havia antes e sequer se me cabe falar de um antes, e que o depois depende também do leitor.

 

Não estou falando de metalinguagem. A linguagem do livro não é referenciada por outra linguagem, ‘maior’ ou ‘exterior'” ou ‘não-diegética’ que abarcaria a primeira.
Não, é assumir que estou escrevendo no momento que estou escrevendo.

 

Alguns exemplos.
“Às seis em ponto”, um dos meus primeiros livros.
A narradora, Maria Tereza, experimenta mentalmente, pedacinho por pedacinho, a narrativa que ela quer fazer para o amante. Então, o livro é o andar dela, dos mais tropeçantes, pela narrativa a ser feita. Não é a narrativa pronta, é seu penoso fazer.


Não estou bem. O perfume me enjoa. Fome também. E os camparis. E a Baixada, cuspindo ônibus, carro velho, kombi, de supetão na frente do carro, soltando fumaça negra, o carro no máximo a sessenta, às vezes menos, porque Haroldo é prudente e freia antes, bem antes, e não ultrapassa quando não dá. Na dúvida ultrapasse. Mas ele não, não sai de trás da fumaça mas se eu fechar a janela piora.
É bem simples. É só contar.
Haroldo, eu estive em Miracema sexta passada.
Eu sei que ele já sabe. O papelzinho.
(…)
Haroldo, sexta-feira passada eu levantei às seis em ponto.  Um bom título para uma história: A mulher que levantava às seis em ponto
(VIGNA, 1998,  7-8)

 

Outro exemplo. “Deixei ele lá e vim”.
Shirley Marlone ensaia o narrar de uma história, lamentando não ser possível contá-la como eram contados os grandes romances ingleses do século XIX.

Pergunto, então, antes que ele possa abrir a boca.
“O que aconteceu?”
Quero algo que eu já conheça. Romances do século XIX com começo, meio e fim claramente apresentados. Preferiria em lugar distante. Inglaterra. Quero o que eu não conseguiria dar. Eu a contar e seria história cortada, com pedaços espalhados em grande planície. Ou praia. E o esforço de ir de pedaço a pedaço. Não dá para fazer esforço. Às vezes não dá, é preciso saber disto.
Peço:
“Vai. Desde a hora em que saí da piscina.”
E que inclua, na sua voz baixa e por muito tempo, todas as outras histórias, mesmo as de depois de eu ter saído dali, desse mundo, momento e quarto. O que, aliás, planejo fazer assim que der. Tem uma coisa que eu sei, preciso fugir.
Mas ele tira minha roupa, e tem menos pressa ainda do que da primeira vez.
(VIGNA, 2006, 114-5)

 

Em “Nada a dizer”, o que deve ser contado simplesmente não o é. O livro termina assim:

Não tenho a menor  ideia de como Antônio Carlos morreu. Deixo esse crime assim mesmo, pela metade.
Sem histórias pela primeira vez na vida, estou bem assim

(VIGNA, 2013, 161)

 

4) Agora, o último ‘entre’ daquela minha lista e que é também o ‘entre’ do meu último livro. É a única característica específica que consegui descobrir para esse livro. Aqui, são as próprias palavras que têm seu fluxo explicitado. O vão, para elas, é bem real. É o pequeno espaço que há entre blocos. O livro é feito em pequenos blocos. As palavras significam uma coisa num bloco e esse significado muda ligeiramente quando retomado no bloco seguinte.
A história do livro é a seguinte:

 

Um cara trepa com prostitutas.
Ele tem uma jovem amiga, com quem não trepa.
Essa moça acaba conhecendo a mulher dele.
Acontece uma coisa nesse encontro entre as duas.
E por causa dessa coisa que acontece, a jovem acha que a morte do final não é só uma morte, é bem mais do que isso.

 

É isso o livro.
Esse, como meus outros livros, não tem tensão nenhuma, até porque vou falando logo de cara que o protagonista morre no fim. A tensão, nos meus livros, em geral é assim, sem ser. Fica no andar penoso, incerto, do próprio contar.
É a tensão de quem anda por ruas desconhecidas, palavras sempre um pouco desconhecidas. E que vão mudando de significado ali na tua frente. E você também vai mudando, vai andando.
Trecho do “Como se estivéssemos em palimpsesto de putas”:

Ficamos. Eu e ele.
A chuva passa. Passa depois de alguns ônibus que também passam, mas não param, mesmo porque não consigo fazer um sinal visível para os motoristas, debaixo do meu telhadinho, totalmente molhada, só um braço esticado à toa, um traço de lápis, desmilinguido, meio apagado pela chuva.

Um traço meio apagado à la Sofia Coppola.
Não existem ainda celulares que tiram foto, nessa época. São uma espécie de tijolo. Fazem ligações de voz, mal, e aceitam mensagens tecladas com grande esforço em teclados numéricos, precários.
Não tenho nem isso. Sou paupérrima.
Caso existissem, e caso eu tivesse.
Estaria na minha mão. Não uso bolsa. Já não usava e continuo não usando até hoje.
(VIGNA, 2016, 155)

 

 

O primeiro traço é espacial, uma linha de lápis. Um braço desenhado que é apagado pela chuva. O segundo traço é temporal e é sinônimo de vestígio. É o que a Sofia Coppola faz em seus filmes, como no Maria Antonieta, ao pôr detalhes contemporâneos em cenários da Revolução Francesa.

 

Falei isso, esse ir e vir, para uma turma de pós do Mackenzie, em São Paulo. E um cara disse que eu tecia ao escrever, como Penélope. Fiquei puta. Primeiro com a imagem feminina estereotipada E depois porque eu não espero nada de fora para definir minha escrita. Não tem um fora, tem um junto.

Penélope tece esperando algo, no caso alguém, o Ulisses, que vai resolver a vida dela, dar a ela uma identidade. A de mulher do Ulisses.
Aliás, Penélope é muito parecida com Sherazade, que também tece, só que com palavras. Penélope espera uma identidade em vida, Sherazade tece para evitar a identidade na morte. A de mulher morta do rei persa. Ambas portanto tecem como um meio de conseguir ou evitar algo exterior a elas.
Eu teço para continuar algo que já existe e já existia antes de eu pegar o tear. E que, para continuar a existir, alguém mais terá de topar participar do processo, e esse alguém, o leitor, será tão destituído de definição, de finitude quanto eu. Ele não tem mais poder do que eu, nem eu mais do que ele.

 

Dei o título de “O vão entre o trem e a plataforma” para esse nosso encontro.
Em inglês há a expressão ‘Mind the Gap’.
Literalmente, ‘Mentalize o vão’.
É isso aí.

 

Bem, falei até aqui do ‘espaço-entre’.
Agora vou falar do espaço-espaço dos meus livros. Os cenários. Os lugares descritos.
Se eu e meus personagens vivemos na corda bamba, indo e voltando, sem meta, hesitando a cada passo, nossos lugares físicos não podiam ser territórios demarcados.

 

 

Parte II

 

Tive um amigo, solteiro de longa data e profissional bem sucedido. O apartamento dele espelhava as duas coisas: rico e voltado ao lazer de um homem sozinho.
Aí ele conhece uma moça e resolve se casar.
A moça faz um plano detalhado de reforma para o apartamento. Queria transformá-lo em um lugar onde ela, em suas palavras, se sentisse em casa; um lugar que fosse uma imagem, em tijolos e cimento, de sua personalidade, e da vida que o casal, ela achava, iria ter dali para frente.
Era uma reforma bem grande, começando na construção de paredes novas e indo até a descrição e encomenda de objetos de decoração, com cores e e texturas especificadas.
Eu olhava essa moça com espanto e um pouco de inveja. Nunca ‘montei casa’, eu. Me mudei uma porção de vezes e fui amealhando móveis descartados dos amigos. Móveis que, por sua vez, iam para outros amigos quando eu me mudava outra vez.

 

Então, meus cenários mambembes têm a ver com minha biografia. Também com minha casualidade geográfica, o Brasil.
Me criei ouvindo a expressão país periférico. Só que não acho que possamos, hoje, reconhecer um ‘centro’, nem nisso, nem em nada que exista. Acho que os fluxos de troca são rizomáticos, isto é, sem centro, inclusive porque não duram ou se duram, mudam.
Então, não, não nasci em país periférico de alguma auto-intitulada potência central cada vez mais envelhecida. Não temos centro, nós. Nem casa.
Meus cenários sempre são parte importante dos meus livros. E nunca escrevi sobre um lugar que não conhecesse bem. Mas não são lugares que os personagens considerem sólidos ou confortáveis. Vivemos, meus personagens e eu, no transitório.
E, mais uma vez, esse transitório tem a ver com o ‘espaço-entre’ de que falei na Primeira Parte.

 

Alguns exemplos.
“O assassinato de Bebê Martê” tem a história de Lúcia, contada por ela mesma para sua melhor amiga, Vera, que a reconta e, mais do que isso, a reencena no livro. O assassinato em questão tem como cenário não nomeado a cidade de Jaú, que é a cidade do interior de São Paulo de onde vem minha família. E é desse canto minúsculo que a narradora tenta atingir um grandiosidade que toca o minúsculo, na característica de rizoma de que qualquer coisa se junta a qualquer coisa:

A primeira viagem tinha sido para as grandes cidades do mundo, a segunda também, a terceira e a quarta para as cidades mais diferentes.
(…)
As últimas viagens foram para visitar os campos, as vacas, as bostas de vaca, os camponeses de bochechas vermelhas e achamos tudo tão interessante e diferente.
(VIGNA, 1997, 75-6)

 

Em “A um passo”, Próspero (é uma referência à “Tempestade” shakespeariana) inventa o próprio livro e seus cenários – que são no entanto, para mim, bem reais. Mais uma vez um Jaú não nomeado.

A sombra de um telhado oferece uma linha inclinada na paisagem. Outras inclinações, hesitantes, ficam por conta de postes que deviam ser cartesianos mas não o são, pois Descartes nos trópicos entorta. A culpa nem é de eventuais desastres de carro nas bases enferrujadas, mas da própria colocação deles, os noventa graus habituais sendo calculados no olho, um torto, o outro fechado, a ponta da língua de fora.
Se se debruçasse sobre o peitoril, o que nunca faz, o professor veria o rio, mais reto e duro do que os postes, pois o sol batendo rijo o transforma em vergalhão de metal imóvel, No entanto, a estrada de ferro ao lado do rio é, ela, um ser em movimento, pois sob o mormaço, seus dormentes se mexem sem parar, como peixes lerdos. Uma inversão.
Apenas uma ilusão de ótica produzida pelo mormaço, o professor repete baixo afastando-se de um peitoril onde não é mais ele que espia nada, mas onde o espia uma loucura que já não dá mais para saber de que lado do vidro nasce.
(VIGNA, 2004, 33)

 

“Coisas que os homens não entendem”.
É uma referência ao verso camoniano “Coisas do mar que os homens não entendem”.
Vou recitar a estrofe inteira de Camões sem nenhum motivo, só porque gosto.
Com licença:

“Contar-te longamente as perigosas
Coisas do mar, que os homens não entendem:
Súbitas trovoadas temerosas,
Relâmpagos que o ar em fogo acendem,
Negros chuveiros, noites tenebrosas,
Bramidos de trovões que o mundo fendem,
Não menos é trabalho, que grande erro,
Ainda que tivesse a voz de ferro.”

 

Desculpem, voltando.

 

O “Coisas que os homens não entendem” se passa em Santa Tereza, um bairro do Rio de Janeiro que conheci muito bem e que apresenta, na sua própria arquitetura, uma passagem sem fronteiras de diferenças. É um bairro antigo, da época do Império, hoje cercado de favelas. A pessoa passa do século XIX ao XXI em poucos passos, de uma classe social a outra.

Você salta no Curvelo e vira à esquerda e é perfeitamente possível você ficar, por anos a fio, sentada na sarjeta ou dentro de um carro estacionado, vendo as casas desbotarem e tornarem a ser pintadas, buracos se abrirem e serem fechados nos paralelepípedos, muros subirem, se cobrirem aos poucos de hera, e seria sempre a mesma rua e essa rua nem é mais a Dias de Barros porque nós todos temos dessas ruas para onde vamos, à noite, sozinhos na cama, uma rua onde nos sentamos, de noite na cama, para ver os fantasmas na calçada, as casas velhas, os edifícios cinzas, austeros, retangulares, e os ecos das vozes, algumas risadas, e os gritos. E no meu caso, também um piano, e eu sei que indo lá, se for, vou mesclar aos sons de tudo o de um piano muito antigo, que erra e que recomeça e que erra outra vez, acertando, nos seus erros, a partitura que é a dele.
(VIGNA, 2002, 21)

 

Tem uma coisa nesse livro que só fui notar depois que ele estava pronto.  Santa Tereza, se você bater no Google vai dar: bairro do centro do Rio de Janeiro. Só que é um centro no céu. É uma montanha. É como se alguém pegasse o centro de alguma coisa, pinçasse com o dedo e o retirasse de lá, o levantasse. É um centro fora do centro, pairando no ar, como pipa. Bem a propósito. Todo mundo dentro do livro é pipa avoada, incluindo eu na época em que vivi os fatos dessa narrativa.

 

Outro exemplo. “O que deu para fazer em matéria de história de amor”.
É uma história inferida, tateada, que a narradora tenta adivinhar para ver se assim consegue entender outra história, a dela própria com seu amante. Mais uma vez, um narrar ensaiado no  lugar de outra narrativa. A ação se passa no Guarujá. Mas no livro, estamos fora de estação. Todas as lojas e restaurantes se encontram fechados e chove sem parar. E assim como há uma narrativa que aponta para outra narrativa, há um Guarujá que aponta para outro.

Faz frio. Desde que estou aqui não tiro o casaco. Agora as coisas entram em um ritmo. Os períodos de silêncio se alternam com as marretadas no apartamento do vizinho, com a bicicleta que vende bolos, e com o cachorro que, enfim, late, sempre que não há motivo. E mais: há um liquidificador pela manhã, em algum lugar. E grupos de pessoas que emergem, insuspeitadas, de shorts e casacos, e de chinelos. Vêm de dentro das casas que me pareciam vazias. São os moradores permanentes da cidade, que eu acreditava não existirem. Surgem como surgem zumbis em filmes de terror. Devagar.
(VIGNA, 2012, 113)

 

“Por escrito” se passa inteiro em quartos de hotéis vagabundos, salas de espera de aeroporto, bancos de táxi. São 312 páginas onde não acontece nada. A narradora está num impasse na vida dela. Não sabe como ir em frente. Está presa numa situação. O engraçado é que ela viaja sem parar. Mas o que conta é a espera, parada, pelo avião, pelo motorista do traslado, o início da reunião etc. Depois ela perde o emprego e piora. Agora ela fica em casa parada sem álibi mesmo. O livro tem uma cartografia desse tentar ir em frente, uma cartografia do Brasil, feita nessas viagens, e a cartografia de um gesto. Numa última viagem, ela encontra a ex-mulher do cara com quem ela está. A ex-mulher faz um gesto. Não que a narradora veja com clareza o gesto. Ela precisa recuperá-lo depois, achar que viu o que viu ou não viu. Esse gesto é terrível e muda tudo, toda a vida dela. Mostra incusive o caminho para ir em frente. É o assunto do livro. E sequer é contado, não pode ser, inteiramente.

E porque frases não podem contar como é ficar sentada com a bunda em cadeira pré-moldada de aeroportos vendo o mundo se tornar outro mundo e o mesmo, sem sentido, alices nós todos, sem notar. Ou porque, ao chegar, outros assuntos, os nossos, tomaram o lugar desses, os de aeroportos. E não contei porque os assuntos que eram os nossos também não eram contados, ocupando nosso entorno com seu silêncio.
(VIGNA, 2014, 140)

 

Então são esses os meus lugares. Vividos, descritos em detalhes, mas onde estou sempre de passagem.

 

E aí invoco o Unheimlich freudiano.
Hoje temos esse mito, de que tudo é perto. Que qualquer rua de Paris terá as mesmas lojas que as de São Paulo. É verdade, mas acho uma verdade ruim e acho que há maneiras de se defender dela. O fluxo capitalista, supostamente solto, é falso. Nos prende. Apenas de outra maneira. Esse perto globalizado supõe um familiar, um igual a mim. Ou, pelo contrário, um diferente que, por ser consumível, será sempre hierarquizado.

 

E aqui vou contar outra história. Aliás, fechando a primeira, a do meu amigo e sua noiva: o casamento deles acabou antes da reforma do apartamento.

 

A segunda história é a minha na rua Bambina, no Rio. Morei lá quinze anos. É uma rua curta. Uns poucos quarteirões que percorri a pé (não costumo andar de carro) em ambas as direções todos os dias. Um dia olhei.
Digo, estando num dos dois fins da rua, olhei. E a rua me era completamente desconhecida. Se alguém me mostrasse uma foto daquilo e perguntasse que lugar era aquele, eu não ia dizer que se tratava de uma foto da rua Bambina.
Me envergonho disso até hoje. Acho que, nos quinze anos em que por lá passei, pus o familiar, o já sabido, na frente de qualquer possibilidade de descoberta, desestabilização, estranhamento. Fechei a Bambina num código e esqueci de olhar para ela.

 

O Unheimlich é uma coisa que busco na vida e nos livros. As coisas têm de estar vivas, ou seja, incômodas. Preciso estranhar o que conheço bem. É uma espécie de respeito. Preciso, para escrever sobre qualquer coisa, respeitar um intervalo entre minha abusiva, comodista e preguiçosa pessoa que acha que tudo sabe, e esse outro – pessoa, cena ou lugar sobre o qual escrevo. Preciso reexperimentar, trilhar os vãos.

 

Meu próximo livro “Como se estivéssemos em palimpsesto de putas” tem a rua Bambina e seu entorno, a rua Assunção e a rua Marquês de Olinda, como um de seus cenários. É como um nó de um rizoma. Um local onde algumas pessoas que conheci se juntaram e separaram:

Seria um João que poderia ter sido um João bom, calmo, uma vida que ele consideraria boa, isso desde sempre. E esse é um dos caminhos que não foram seguidos.
Tanto quanto o que poderia ter sido o meu e de Mariana.
Eu e Mariana também outras, nós duas juntas e criando Gael, e também seríamos um eu e uma Mariana com uma vida também boa.
E Lola poderia ter sido vista por João, em algum momento antes do que eu acho que afinal foi.
E Lurien, o único que seguiu suave o seu difícil caminho.
E mesmo a Lorean, quando penso, também teve uma sequência, embora em materializações outras que não a de uma garota da Kilt.
E Cuíca.
Mas nos cruzamos, todos. Numa rua sem movimento de Botafogo, uma rua cuja existência nunca ficou muito bem explicada para mim, porque a Marquês de Olinda, saindo da Bambina e terminando logo ali, na praia, não tem lá muita razão de existir.
(VIGNA, 2014, 181)

 

Então acho que escrever não tem muita razão, a não ser viver o próprio escrever e, ao fazermos isso, reexperimentar algo passado e ir em frente, nômade, convidando quem passa para se juntar à caravana.