Os narradores

Texto “os narradores”, em duas partes.

 

 

1) texto-base para o vídeo “narradores”, produzido pelo professor Leonardo Tonus para o site “Estudos lusófonos” da Sorbonne IV, em agosto de 2011:

 

Em busca de um narrador

Resumo:
A busca de um narrador, em meio aos produtos da indústria cultural, passa por dificuldades como a atratividade de uma despersonalização distanciada e confortável, que é oferecida pelo produto espetacularizado, e também sua temporalidade viciante. Como estratégia, há o deslizar não dicotômico que nos vem de Derrida, e uma história de permanência do frágil, do arcaico, na nossa cultura.
Palavras-chave: narrador, espetacularização.

Este texto é decorrência de uma palestra que preparei para um evento literário em João Pessoa, em agosto de 2011. Na ocasião, escolhi falar dos narradores que emprego em meus livros. Parto, portanto, da prática. A minha é uma posição por assim dizer maneirista, em que a prática que nunca se repete igual me obriga a pensar em uma teoria que lhe sirva de escora. É isso, e não seu contrário, em que uma teoria busca sua comprovação em exemplos práticos.
Nesta ocasião, estou frente à seguinte dificuldade. Meu último texto ficcional, o “Nada a dizer”, teve um narrador problematizado de forma radical. Depois de uma longa fila de narradores (*) que acham necessário: 1) avisar que mentem ao contar a história; 2) que declaram não ter ideia de como a história acaba, ensaiando inclusive várias hipóteses para ela; 3) que não têm nome ou vários nomes diferentes; 4) no “Nada a dizer”, o narrador simplesmente não conta a história. Todo o livro é uma problematização de seu papel como narrador, e a história a ser contada – a de um assassinato – não é contada.
Agora, trato de pensar um próximo narrador a partir da base comum a todos eles, e que é espacial antes de ser temporal. Explico: é preciso que meu narrador tenha a exata distância do que irá narrar – e de mim. Sendo que o que ele irá narrar só saberei quando narrar. Há apenas, para começar, uma cena, que é, como sempre, vivida. Para saber que cena é esta é preciso narrá-la. Para narrá-la, preciso de alguém que a narre. E este alguém me dará todo o resto. Portanto, antes da construção temporal, literária, há uma questão espacial, que é a distância – emocional, cognitiva – do narrado. Como o que conto é sempre o vivido, tal distância também será, ao mesmo tempo, uma distância de mim.
Há mais uma dificuldade. O estabelecimento desta exata distância se torna mais difícil no contexto da inserção de todos (o que me inclui), em uma cultura espetacularizada. Acompanho assim, me valendo da metáfora da escritura como rua, a definição espacial do doutor em planejamento urbano Walcler de Lima Mendes Jr, em seu texto sobre cidades: “Retornando à construção do sujeito-autor, alegoria radicalmente oposta à do telespectador passivo, podemos estabelecer que a primeira distinção entre o sujeito-autor – que cria a partir da troca de experiências e do diálogo – e a indústria cultural – que enxerga os sujeitos sob a condição de telespectador – diz respeito aos referenciais de próximo e distante.” (Mendes Jr., p. 95). Em um momento histórico em que atritos são evitados – por urbanistas ou escritores – através de uma estratégia de criação de espaços determinados e controlados para cada função social ou sua representação – preciso evitar a tentação do espetáculo, possibilidade sempre oferecida para quebrar tal isolamento. Seja um show da Rita Lee, um desastre com mortes ou um cenário degradado superficialmente descrito, e caímos em um simulacro de compartilhamento sem notar que somos plateia mais do que multidão. Nos juntamos, se tal hipótese vingasse, não propriamente um e outro em fricções ou sociabilidades, mas todos dirigidos e apostos a algo, de fora, estrangeiro, que nos dará a sensação de igualados, embora apenas por um instante. E arte é necessariamente fricção.
E mais uma dificuldade. A nossa. A de brasileiros. Uso o termo com muita hesitação, e não só por cheirar a uma totalidade que me seria muito difícil defender. Procuro me justificar  me valendo de dados  mais no eixo diacrônico do que no sincrônico. Piora. Dentro da já por si difícil categoria de brasileiros, me vejo em outra, a de gênero. Sou alguém não pertencente à categoria hegemônica do campo literário brasileiro (Bourdieu, 1996). Mas isto deixarei para o final.
Minha estratégia é a de quebrar regras e expectativas da representação. Faço isso de duas maneiras. Primeiro, trazendo para meu ainda hipotético narrador, o rastro do vivido, com pouca atenção à construção de um verossímil linear (o que sempre supõe a escolha, o descarte), e menor ainda ao ritmo imposto pelo impacto imagético. É, de fato, um andar na rua ou na vida. A segunda maneira, ligada à primeira, é a de gostar de narradores que dizem o que fazem, e que é narrar, no momento mesmo em que fazem.

O narrador pessoal
Procuro um narrador existente na vida real, frágil e individualizado. Não que eu tenha a ilusão de me pôr fora da cultura espetacularizada, já disse. Mas, como sempre, historicamente e hoje também, há brechas, e é nas brechas que existo. Por exemplo, a questão da troca, troca esta que ofereço, em desvantagem, ao lado da oferta de ilusão de troca, produzida por processos muito mais poderosos, e industriais. No entanto, é uma questão básica, esta, que define mesmo a possibilidade de haver arte. Pois em uma época em que não há comportas divisórias de acontecimentos artísticos – rituais, cenários ou agentes que lhes sejam específicos -, só podemos saber se aquilo contém uma potencialidade artística, ao percebemos que não termina em si mesmo. Se for, pelo contrário, um convite de continuação, de troca. Falo aqui de qualquer arte, não só de literatura, pois todas estão mais ou menos no mesmo estágio de renovação necessária para manter sua especificidade, não mais formal, estética, sequer ética, mas como locus de desconforto, transformação. Andança.
O modelo a ser enfrentado já se torna antigo. Foi delineado teoricamente no início do século passado, por Umberto Eco, Marshall McLuhan e outros. McLuhan nos anos 1950 exprimia a necessidade de se fingir uma troca – e ele é textual – para que a mídia pós-gutenberguiana (o termo é dele) pudesse sustentar seu poder de persuasão hegemônica (McLuhan, 1964, p. 359). Pós-gutenberguiana, mas em que se incluem o livro e outros materiais escritos, nem um pouco imunes à lógica do espetáculo.
Na área literária, que é a que nos interessa, a espetacularização funciona mais ou menos assim: primeiro, há a despersonalização.
Não há construção de mapas espaciais afetivos individualizados nos cenários descritos. A representação espacial dos locais em que se passa a ação é a de cartões postais esquemáticos ou seu contrário, de zonas do mal. Também não haverá aproximações falhas, hesitantes, dos heróis/anti-heróis tipificados ou nas suas ações, consideradas a partir de seu valor imagético. Um detalhe interessante: rua – com sua fricção e socialização lentas, com seu não-acabar – é coisa rara no percurso de tal narrador.
É como se os elementos da narrativa  – personagens, cenários, ações – estivessem lá como índices de uma totalidade controlada, ou pelo menos compreendida, apenas pelo narrador – esteja ele ausente (o narrador onisciente, onipotente e com o dom da ubiquidade) ou nomeado, em uma falsa identidade. Como se houvesse totalidades. Pior, e eis o fingimento de troca: o que tal narrador oferece, inclusive sobre ele mesmo, são índices, exatamente. É fingimento de troca porque o que haveria para ser trocado não está lá, o que está é um índice, um signo. Quem complementa é o leitor. Mas complementar não é sinônimo de participar. O leitor é instado a escrever nos pontinhos, a completar a frase, a descrição. E o faz, quando faz, com regras bem estabelecidas, e não por ele. Tal complementação do que lhe é apenas indicado se dá à distância (corporal e funcional) e na aceitação de limites impostos. Pois a narrativa espetacularizada se apresenta com começo, meio e fim determinados; com linguagem estabelecida – o que não quer dizer pouco em termos de direcionamento de pensamento; e funções claras para este leitor. E, sem que ele sequer atente, também dentro dos limites ideológicos, claro, em que se encontra. Ao leitor e ao narrador deste tipo de narrativa é vedada uma comunicação afirmativa de sujeito a sujeito, uma troca de vivências. Estão presos no isolamento do ideário urbanista-literário moderno. Distantes um do outro, falam sozinhos, mantendo e reafirmando, ambos, seu acervo de explicações de mundo: a narrativa espetacularizada já traz sua bagagem de explicações, não as forma.
Então, trata-se de um produto. É uma narrativa feita a partir de um processo não individualizado de autoria (pesquisas de marketing, planejamentos estatísticos e assuntos de oportunidade), e que não oferece brechas, vazios. O leitor pode apenas complementar lacunas, sozinho, isolado, e de forma bem rasa. Dois exemplos desta situação que se encontram com frequência na nossa literatura contemporânea: o imitar de jargões de grupos marginalizados; a descrição imagética de locais-tipo, como edifícios abandonados. São apresentados não em seu percurso vivo, mutante, mas como signos de algo já sabido, fechado. Um substitui a fala oprimida, não-direta, hesitante e figurativa dos marginalizados. O outro apresenta como estáticos os vazios cheios de vida, cotidiana e variada, das áreas “abandonadas” das cidades. O argumento de que não seria possível transpor fatias do cotidiano, a não ser através de detalhes indiciais e signos, se baseia principalmente no ritmo, na temporalidade lenta, não direta, que seria a do vivido e que é contrária à  temporalidade rápida de que as narrativas espetacularizadas precisam.
E aí chego ao segundo ítem do que observo nas narrativas espetacularizadas, depois da despersonalização geral dos elementos narrativos. O seu tempo.
Não há inocência. O tempo rápido a que o leitor se vicia ao ler os best-sellers internacionalizados o impede de disparar seus mecanismos de análise. Dá só para dizer, quando a narrativa é eficaz, um “puxa!” oriundo de um impacto que já se desfaz na hora mesmo em que é dito, e que exige, por isso mesmo, mais um impacto, uma nova narrativa – igual, para manter o nível do falso envolvimento emocional. Instala-se, assim, o ritual da repetição de uma narrativa que é, ela própria, também repetitiva. Quero dizer, não há uma narrativa original, um começo original que é repetido depois, quando se trata de espetacularização. Não há começo nem originalidade. E ser considerada insatisfatória não é um defeito, é uma qualidade. É graças a isso que tal narrativa pode ser, e é, reoferecida.
Não é inocente, já disse, pois impede a análise. E, quando a rapidez vem aliada ao aspecto – também já visto – do uso de índices e signos na substituição do pessoal e do vivenciado, produz-se algo pior e mais duradouro. A recepção extensiva – e rápida – de signos indiciais desenvolve consciências igualmente indiciais que nunca, nem quando afastadas por hábito ou preço das páginas da narrativa em questão, conseguem transformar eventos vividos em vivências. São leitores/receptores que se constroem no formato plateia, recebendo o efêmero, o rápido e o já conhecido. Postos frente a um narrador pessoal – ou ao inesperado em uma esquina – não saberão o que fazer com ele. A representação de mundo oferecida pela espetacularização é fechada, já explicada e assimilada. Quando introjetada, ela impede a instalação de vivências e as substitui por esta espécie de conhecimento prévio. O professor de filosofia da USP Vladimir Safatle, em sua palestra no seminário “Revoluções, uma política do sensível” (Sesc-Pinheiros, em 20 de maio de 2011), compara a indústria cultural a uma espécie de educação sentimental, em que todos são instados a reagir sempre de modo já previsto a acontecimentos sempre já esperados. O narrador espetacularizado apresenta sua história de forma já enquadrada em uma explicação prévia, contando com um acervo de conhecimentos rasos, sem possibilidade de renovação. E tudo que não der para ser enquadrado dentro deste acervo já conhecido é rejeitado por lento ou ininteligível. Tal leitor e tal narrador são limitados e continuarão sendo limitados pela vida afora, porque estão fechados a experiências diferentes das que já “conhecem”.
Ao falar do narrador universal, onipotente, onisciente e presente em todos os lugares ao mesmo tempo, não incluí na minha descrição o seu leitor, que o mimetiza. A crença na ubiquidade é contagiosa, como disse Nelson Brissac, em sua palestra “Muito além do espetáculo”, do ciclo do Adauto Novaes, em 2003. Isto se dá quando, neste tipo de ficcionalização espetacularizada, há referências a espetacularizações jornalísticas ou históricas do real, como a derrubada das torres gêmeas, a guerra do Iraque ou crimes famosos de hoje ou não. Nesta circunstância, o leitor se sentirá “lá”, embora o que tenha nas mãos seja uma obra de ficção. Ele estará em pleno gozo da ubiquidade, acompanhando “ao vivo” acontecimentos históricos – de sua época ou da antiguidade. Sendo que, claro, tais acontecimentos históricos estão sendo vistos através do pensamento hegemônico, dominante no momento presente, e transmitidos por meios tecnológicos a partir de processos industriais, e não pessoais, de produção. Aqui também, como nos tópicos anteriores – rapidez e desindividualização -, o leitor se conforma em um limite que dura bem mais do que o momento gasto sobre as páginas de um livro ou tela de um leitor digital. Como disse Brissac, acontecimentos distantes, apresentados de modo sedutor, seguro e sem problematizações, são preferidos em detrimento de outros acontecimentos, mesmo mais próximos e de influência mais direta na vida do leitor. Ele não se manterá sensível ao impacto mais cotidiano e mais direto de um mendigo na porta de sua casa. Uma fricção deste tipo, que pode ocorrer ao sair de seu edifício, infelizmente não causa explosões, não produz uma imagem que possa concorrer com o acontecimento cujos signos lhe são apresentados com grande impacto pelo narrador espetacularizado. Ou seja: além de este tipo de narrativa não convidar o leitor a um pensamento/processo aberto, artístico, de questionamento e transformação, ele dificulta a vivência posterior de seu leitor, ainda que ele seja um leitor ocasional. Ele vai chorar pela Lady Di. Não vai achar que lhe diz respeito ataques homofóbicos ou a violência policial de sua cidade.
É normal. Tais narrativas espetacularizadas fazem apelo à visão. O leitor “vê” o que já havia visto antes. Na verdade não viu, claro, pois se trata de algo longe ou não existente, mas ele considera, graças à política dos índices e signos repetidos, como tendo visto. O problema é que visão não se dá só no olho. A pessoa vê a partir de um ethos. Ethos pode ser definido como um conjunto de condições em relação a um estar, ou seja, aquilo que se tornou um hábito dentro de um estar específico. A visão, assim, inclui sempre uma cegueira. Como a narrativa espetacularizada nunca representa um cotidiano pessoal, visto ou vivenciado, ela trabalha com esta visão nunca vista dos desejos e fobias do seu leitor. Os acontecimentos distantes são mostrados como mais reais do que aquilo que o olho poderia ver. O que o olho poderia de fato ver seria a banalidade lenta do cotidiano local e próximo, e que, por ser do hábito, não é de fato visto.
Aqui, ao falar da banalidade, cabe um reparo. A banalidade não é nem um pouco fácil. Mesmo graças a brechas que, sim, ocorrem, pôr o banal em uma narrativa é difícil porque a própria banalidade e os seres banais a ela ligados se estimulam a emular uma primeira autorrepresentação espetacularizada. O difícil é encontrar o banal, como disse Baudrillard (1981, p.148), ao se referir à instabilidade romena.
Já disse que a narrativa espetacularizada se beneficia da grande distância que mantém do seu assunto. As coisas acontecem longe. E agora vou completar. Também há uma distância temporal. As coisas acontecem longe e em outro tempo. Isso se dá mesmo quando o presente narrativo está na própria cidade do leitor, e em seu próprio tempo de vida. Pois, já disse, o viés tipificante da espetacularização impede o reconhecimento de singularidades, proximidades. A única singularidade permitida, também já disse, é na pós-leitura, na complementação que às vezes ocorre em relação aos signos oferecidos, e que mantém, esta atividade de complementação, por causa dos limites em que ela se dá, o leitor em seu papel de plateia, tão não individualizado quanto o narrador, e tão incapaz quanto ele de contribuir para um processo transformador que, aliás, não está lá. (Lembrando: processo transformador como condição necessária para a instalação de uma relação criativa, artística.)
E agora, depois de falar do tempo e da despersonalização, chego na diferança derridiana. No deslizamento. O narrador pessoal fala necessariamente de um vivido. Vida nunca é totalmente boa ou ruim, feia ou bonita. O narrador que narra o vivido escapa não só dessas dicotomias mais óbvias mas também de outras que vêm a reboque: o assunto narrado incluirá, nestas circunstâncias, o seu narrador. Não há mais, aqui, representação & assunto representado. Autor & leitor também se abatem um sobre o outro, trocando de papel no decorrer do processo. E os mecanismos de ficcionalização, de busca da verossimilhança, se dão mais pela ausência do que pela manipulação do que está presente. Portanto, também a oposição básica, classificadora, de ficção & realidade não se mantém. A narrativa que provém de um narrador que se assume de carne e osso e que supõe outro ser igual como leitor faz mapeamentos temporais-espaciais sempre em aberto, sempre com um convite de continuidade. Como decorrência disso, essas narrativas são com frequência também plurais, de várias vozes. O convite da troca, da continuidade, existe desde a construção, é gerativo. Por causa disso, além de plurais, abertas ao leitor, tais narrativas também são com frequência nômades, ainda que situadas em um só lugar. Pois seu(s) narrador(es) vê(em) este lugar com o olhar do não completado, do que contém sem parar um novo, e que é o olhar de quem está em movimento contínuo. O “estar vivendo” do “Tentando captar o homem-ilha”, do professor Ítalo Moriconi, aqui se expande para incluir o próprio ato de narrar. Assim, o nomadismo do narrador que busco vai além do registro. É um olhar nômade, é uma construção aberta, portanto em movimento, mas é também uma interpretação que se modifica com as percepções individualizadas de seu leitor. Se o convite para outras vozes já está lá desde a construção da narrativa, o nomadismo se mantém no pós-texto, com a interpretação-contribuição do leitor, com os devires do texto. Resumindo: o narrador (aquele, de quem gosto) desliza entre a autenticidade do narrado e sua verossimilhança (ficcionalizando na exclusão e não na inclusão); vê o que narra como um nômade que desliza por lugares; desliza também entre ser “dono” do narrado e fazer parte dele; aceita ou convida outras vozes, vozes estas que também estão convidadas a interpretações igualmente móveis, já que o narrador não apresenta explicações ou fins fechados para sua história.
Se, em uma narrativa espetacularizada, todos sabem o script de antemão e o aguardam seguros de sua posição confortável, na narrativa que procuro delinear aqui, há perdições, desvios, não se oferecem guias confiáveis. O narrador de minha predileção avisa que a única coisa que há a oferecer é uma relação em andamento.

Alguns narradores pessoais
Há narradores que me servem de exemplo. Ninguém escapa de fato à espetacularização, pois mesmo buscando suas brechas é ela o ponto de referência. Mas temos exemplos de discursos autorais anti-hegemônicos, de estratégias que denunciam a lógica da espetacularização. Dos que vivem nas brechas.
Borges. Antes, um aparte. A obsessão pelo controle total do material narrado é coisa modernista embora sirva às finalidades contemporâneas do espetáculo. Também pode ser analisada sob a ótica da política de gêneros. O narrador é quem tudo sabe, tudo pode, inclusive tirar um coelhinho-mordomo da sua cartola-boné, para explicar tudo, ou se vestir de inspetor inteligentíssimo, dono de todos os conhecimentos. Sim, um homem, ainda quando travestido de mulher, em geral assexuada. Este ser modernista, masculino e controlador, foi um narrador que funcionou bem até o século passado. Borges caçoou dele. Seja na impraticabilidade da Biblioteca de Babel ou no mapa gigantesco do tamanho exato daquilo que mapeia, Borges ridicularizou essa vontade de controle, de busca pela totalidade. Totalidades implicam na existência de um lugar alto de onde elas possam ser olhadas. O narrador que as vende – em geral na terceira pessoa, mas não necessariamente – é uma espécie de deus. Contra ele se voltou o religioso Borges.
Vila-Matas. O cultuado, e algumas vezes ilegível, Enrico Vila-Matas também é irônico, mas de outro jeito. Seus narradores seguem a estratégia de Homero e ambos trazem a voz plural de que já falei. Não só são narradores múltiplos, mas narrativas dentro de narrativas. Esta estratégia de Vila-Matas se enriquece ainda mais quando percebemos que, com frequência, ela preserva um resíduo de oralidade, seja no formato pergunta-resposta (também presente na “Odisséia” e “Ilíada”), seja na linha frouxa que vai de um caso narrado a outro. O narrador do espanhol Vila-Matas, neste momento, se aproxima muito de outro narrador igualmente plural e aberto, e muito nosso conhecido, o repentista nordestino. Há, nestes casos, o uso de ecos de um acervo cultural que, sim, é espetacularizado, indicializado e de conhecimento prévio. Mas cujo encadeamento apresenta as brechas para a inserção do inesperado, do novo. Walter Benjamin, em “Magia e técnica, arte e política”, cita outras narrativas plurais e orais igualmente famosas, “As mil e uma noites” da Bagdá do século VIII; “As viagens de Marco Polo”, esta última também citada por outros autores que se dedicaram ao tema. Acrescento mais uma: Guimarães Rosa, que acolheu não só as narrativas dos sertanejos brasileiros, mas mimetizou a fala oral deles em seu texto.
O pernambucano Fernando Monteiro, em “Armada América”, apresenta outra estratégia, ainda no viés irônico, com vínculo direto à sua experiência de escritor-cineasta afastado do eixo Rio-São Paulo. Neste seu livro de contos, as narrativas imitam a tradução malfeita, para o português, dos textos espetacularizados escritos em inglês. Com isso, Monteiro denuncia o vocabulário limitado e sem atrativos empregado pela linguagem universalizada deste tipo de narrativa. No seu romance “Aspades”, com um narrador no presente do indicativo e na primeira pessoa, o texto, plural, é construído por etapas, lentamente, e não se conclui.
Outros exemplos me vêem através de narrativas visuais. No início de 2011 houve uma exposição de fotos de Wim Wenders no MASP. Chamou-se “Lugares estranhos e quietos”. Sem closes descontextualizantes ou panorâmicas desindividualizantes, as fotos tinham a distância exata que procuro nas minhas narrativas. Todas elas traziam um vazio, uma quebra nas suas linhas estruturantes, a permitir a entrada do fruidor nos processos construtivo e interpretativo.
Outro exemplo, este em música. “Alice’s restaurant” é a criação de Arlo Guthrie que deu origem ao filme “Alice doesn’t live here anymore”, de Martin Scorsese (1974).  Filme e música narram uma história passada na região semirrural do Sudoeste americano. Ambos, filme e música, carregados de signos dessa cultura. À primeira vista, tratar-se-ia da narração distanciada, que trabalha com tipos, que se dirige a plateias não individualizadas, universalizadas, da espetacularização dominante. Na música há referências à linha do trem, ao restaurante de beira de estrada, ao carro velho, ao xerife. Mas o eixo da história se dá a partir de um lixo que ninguém sabe onde pôr. Metáforas. Não é minha preferência. Mas vejo sua utilidade e em mais de um momento, pois acabo de comparar minhas páginas a ruas.
O processo industrial de edição de livros provoca assassinatos diários de singularizações. Como qualquer indústria cultural, ela também é fascista ao exterminar diferenças. Quem já trabalhou em departamento editorial reconhecerá a frase: “não sei o que fazer com isso”, frente ao original que não se enquadra e que acabará recusado, não por falta de qualidades, mas por não ser o já conhecido, testado, esperado.
Iniciar uma narrativa literária é tarefa árdua. Antes mesmo de eu conseguir entender o que me obseda e, portanto, conseguir saber o que quero narrar, preciso descobrir meu narrador. Para isso, preciso vencer o afastamento grande das coisas em que me encontro, eu, tanto quanto qualquer outra pessoa, presa que estou na lógica vigente, a do espetáculo, e que me é confortável. Sei o que me atrái nesta distância. Na desterritorialidade e temporalidade acelerada da técnica atual do romance, está embutida minha desistência de indivíduo e a sedução do coletivo. É uma burka. Presa nesse tempo que não é o dela e na distância (grande) adequada para tal velocidade, minha  narrativa precisa primeiro se desvencilhar da expectativa do outro. Do contrário, ela será menos uma troca de experiências e mais um encapsulamento de ordem e controle, de normatização e subjugação a serviço de uma ideologia produtivista, de excesso (e como tem livro!).
E aqui chego à singularidade do não-pertencimento às camadas mais altas do poder hegemônico, seja por questões de gênero ou de geografia. Às vezes vira o fio. E o que era alijado e rechaçado passa a alijar e rechaçar. Provoca uma independência.
Vê-se isto mais claramente na história da arte visual brasileira, acho, do que na literatura. O crítico Rodrigo Naves (1996, p. 12) diz: “No entanto, essa independência conduz quase sempre a um jogo peculiar, em que faturas, formas e dimensões parecem se ocupar consigo mesmas, adiando indeterminadamente sua definição visual. Sua leveza, a ausência decidida de um lastro que as separe de si mesmas, é também um descompromisso com a exterioridade.” Me vejo subitamente à vontade no artesanato moroso e frágil que requer o fazer artístico-literário atual. A pemanência do arcaico, do efêmero, me faz andar com familiaridade na rua necessária. É a escrita indecisa de Mira Schendel que me ajuda. Os nevoeiros de Guignard. É saber que mesmo um ícone do modernismo masculino, como Amilcar de Castro, dobrava femininamente seus ferros monumentais, e os pousava em delicados pezinhos frágeis.
Há um arcaico que permanece e que problematiza  a atenção distraída, o distanciamento, descritos por Moriconi (1987, p. 24) para seu homem-ilha. Há elementos diacrônicos que incluem o escravo, a mulher, o aleijão, no nosso fazer artístico, e que se mantêm presentes. É uma especificidade, esta, a ser valorizada. Serve de apoio para o embate.

(*) Minha fila de narradores é a seguinte.
1) “O assassinato de Bebê Martê” tem uma estrutura dupla. Um narrador secundário narra um crime que será narrado-atuado pelo narrador principal. Na diferença entre um crime e outro, um narrador e outro, a violência contida em qualquer representação, a tentar encobrir a incompletude de todas as histórias.
Ao final, o narrador principal pergunta:
“(…) se acreditou no que eu contei sobre a morte de Lucia.
Ele diz que não.”
2) “Às seis em ponto” é a dificuldade de um narrador contar a história passada em um fim de semana, durante um fim de semana em tudo similar àquele que está sendo contado. A dificuldade de contar para seu companheiro e a dificuldade de contar para o leitor, igual.
Ambos, leitor e narrador, enfrentando a dificuldade de representar o que está sendo vivido ali, naquele instante.
Vivem, ambos, a dificuldade da individuação. Pois o narrador, uma mulher, tem uma gama de nomes que vai de Maria Tereza a Titica, passando por Tequinha, Teleca e outros.
E aqui também, a incompletude narrativa está presente. A última frase é esta:
“Mas ele tem um olhar sem histórias e eu não tenho mais histórias.”
3) “Coisas que os homens não entendem” tem um narrador que ao contar a história de uma viagem (uma homenagem a Camões, cujas citações estão integradas ao texto), percebe que o que aconteceu não cabe numa história. Escolher algo que faça sentido exclui sempre muita coisa.
Termina assim:
“Não sei o que é, não entendo, e nestas horas, mesmo fora do espelho, sei que fico com a cara do Lia – este  espelho que morreu em vão. Nem isto me preocupa, é um pensamento que passa antes de eu me dedicar a imaginar o que realmente gosto, e que são os detalhes de como será quando eu sair por aquela porta, um novo tlec.”
4) “A um passo”, de todos, é o que considero mais explícito na sua técnica narrativa. Seu narrador principal é uma letra e não um nome: P. P. de Próspero (minha homenagem a Shakespeare). Ele só aparece no final, a mexer os pauzinhos, inventar os personagens de uma trama que não termina.
O final é assim:
“(Meu lápis preto pousado parece um peixe já morto que guarda na ponta do rabo
um tremor doido, um calor traidor.)”
4) “Deixei ele lá e vim” tem um narrador que se identifica como narrador – além de partícipe da história contada – ao final do livro, que termina assim:
“Em 10 de agosto de 2003, segundo a internet, alguém comprou um CD do Carbona e anunciou isto no seu blog. Houve um campeonato brasileiro de algum esporte não citado, talvez porque quem escreveu a nota achasse que todo mundo saberia do que se tratava. Uma imbecil lamenta que o dia dos pais não tenha sido tão lucrativo quanto o dia das mães. Aventa a possibilidade da crise econômica mas conclui que o motivo verdadeiro é que há mais mães do que pais. Além disso, a Agremiação Acadêmica terminou em sexto lugar no campeonato de xadrez de Figueira da Foz, em Portugal.
Não havia nada sobre Dô, o hotel, o Vidigal. Nem no dia 10 nem no dia seguinte, nem no seguinte do seguinte e nos outros que abri até cansar.”
Este narrador não tem nome.
5) “Nada a dizer” traz meu narrador mais problematizado. O livro inteiro é a descrição das condições que o impedem de narrar sua história, a de um assassinato.
Termina muito parecido com Às seis em ponto:
“Não tenho a menor ideia de como Antônio Carlos morreu. Deixo esse crime assim mesmo, pela metade. Sem histórias pela primeira vez na vida, estou bem assim.”
6) “O que deu para fazer em matéria de história de amor” (inédito nesta data) tem um narrador que confessa não saber como é de fato a história que conta. Inventa, adivinha, estuda várias possibilidades.
Também aqui o narrador não tem nome.
Termina assim:
“E eu e Roger somos só isto mesmo, sem muito nome, sem sentido algum. Digo isto a ele.
“É verdade”, responde. Mas não ri.
Continuo sem saber como acaba.”

Referências bibliográficas
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COELHO, Teixeira. O que é indústria cultural. São Paulo: Brasiliense, 1988.
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2) texto-base da palestra do dia 10/01/2012, do Simpósio internacional de literatura brasileira contemporânea, na Sorbonne 4, em mesa comLuiz Ruffatto, Regina DalCastagnè, Maria Graciete Besse e José Leonardo Tonus.

 

Narradores, um adendo: o tempo e as descrições fotográficas no romance

 

Já disse antes como é o narrador com quem eu gosto de me relacionar: indeciso, banal, com uma vidinha mais para a chata. Disse também onde posso encontrá-lo: andando na rua. Agora vou dizer que tipo de coisa acontece com ele. Ou, melhor, para onde ele está olhando quando alguma coisa, sim, acontece. Está olhando para o outro lado. E prestando muita atenção neste outro lado, nem um pouco importante. Ou será que é?
A descrição fotográfica, minuciosa, tem, nos meus romances e nos que seguem a mesma linha de uma literatura não espetacularizada, um papel que considero importante e que tem a ver com o tempo. Com o tempo, e não com o espaço, que, no entanto, é o que está ali, minuciosamente descrito. Como na captação fotográfica de um real, a captação literária desse mesmo real também diz respeito a gerúndios transformados em presentes do indicativo. Que guardam, da época em que eram gerúndios, um antes e um depois. Aliás, dois.
O primeiro antes e depois é simples. É esse do gerúndio. Diz respeito à existência real do que é descrito. Por se tratar de descrição fotográfica aquilo é entendido necessariamente como tendo uma existência real. Existências reais são temporais. Não eternas, não imutáveis. Portanto detentoras de um antes e um depois.
O segundo antes e depois é o da descrição em si. É o mais interessante. Se o narrador descreve, aquilo existe antes de o narrador descrever, ainda que por nanossegundos. O receptor, então, fica frente a um tempo não newtoniano – que é o tempo que ele mitifica como sendo o “verdadeiro”, o tempo do fluxo sequencial, do rio que corre e tal, e que é o tempo sequencial da narrativa do livro, página por página, ainda que a narrativa seja não sequencial. Mas eu volto a isso depois. O receptor fica frente, então, a um tempo não-newtoniano. A um tempo quântico. Que contém 1) o tempo da existência ali, no mundo, daquilo, independente de ser aquilo objeto ou não de uma descrição; 2) o tempo da descrição daquilo, que conserva, por ser realista, aquele primeiro tempo, o tempo do real; 3) o tempo do presente fenomenológico do leitor frente às palavras do narrador que descreve algo que ele, leitor, entende como existente no mundo fora do livro. Há portanto, concomitantes, ou em saltos quânticos, dois passados (o do objeto em si e o da descrição do objeto pelo narrador) e um presente (o da leitura). E esse presente também é produtivo, pois descrições fotográficas, sem exatamente um centro, em que detalhes são igualados em sua importância ou não-importância (tanto faz), também são feitas com a ajuda do olho do receptor. Que lambe, vai, volta e faz/refaz a partir de seus próprios acervos pessoais e culturais, e seus desejos. Seus-dele, receptor. É uma relação de igual para igual, em que a autoria da descrição se abre em potencialidades, em não-fechamentos ou autoritarismos/autorismos. Em outras palavras, o receptor sempre poderá pôr um bigode na Mona Lisa que o narrador está descrevendo. Em mais outras palavras, essas famosas, da Anne Cauquelin, “o autor desaparece como artista, ele é apenas aquele que mostra.” (p.94)
A descrição fotográfica é na verdade uma caixa de diálogo. O que a torna muito eficaz em termos de resistência ideológica, mas isso é para depois.

Antes, duas ressalvas e uma definição.
Primeiro, a primeira ressalva: me refiro aqui à descrição minuciosa, realista ou hiperrealista, de cenas, sejam elas importantes ou não para a sequência narrativa do romance. Uma descrição não realista ou pouco realista será recebida como fruto da imaginação do narrador, e aqueles dois antes e depois de que falei já não se mantêm.
Agora, a definição: o termo hiperrealismo, que tive o cuidado de evitar até aqui. Vou dizer por quê. Hiperrealismo e realismo não são a mesma coisa, com diferença apenas de grau, um mais que o outro. Não. É bem o contrário, embora as tais implicações ideológicas de que falarei adiante possam ser as mesmas. O hiperrealismo vira o fio. Dá um incômodo, uma ansiedade, porque a realidade começa a parecer não ser bem do jeito que a gente achava que era: banal, chata, cotidiana. Passa a poder ser diabólica. Nosso olho escolhe detalhes que queremos e fica cego para os que não queremos ou suportamos ver. O hiperrealismo nos obriga a ver o que não veríamos. Tirando esse aspecto perverso do hiperrealismo – e de que eu gosto muito – o resto continua igual.
Segunda ressalva: quando digo que o foco fotográfico pode se dirigir a detalhes importantes ou não importantes para a sequência narrativa, que tanto faz, não tanto faz. Há uma diferença grande de estratégia. Se se trata de detalhe em cena importante, o fato de o narrador detalhá-la quebra a lógica do espetáculo por introduzir um ralentar obrigatório no que, de outra maneira, se daria mais rapidamente. Mas ele assim pode criar uma metáfora. O pequeno papel que voa, faz uma pirueta no ar e cai no chão vira o símbolo da explosão. Quando, ao contrário, o detalhe não é de cena importante, o narrador pode criar uma metonímia. Aquilo que ele enfoca estará então ao lado do que realmente importa para a sequência narrativa. Ou apenas terá a mesma cor, ou nem isso. O tanto faz fica por conta do convite que a descrição, qualquer uma, de detalhe importante ou não, faz à participação do leitor, o convite para que ele ponha o seu vivido ao lado desse outro vivido que lhe está sendo oferecido.
Bem, as implicações ideológicas. Algumas, não resisti, já esbocei aqui e ali.
Vejo a presença de descrições fotográficas na narrativa de um romance de forma parecida à do mictório do Duchamp em um museu. É comum, hoje, ir buscar Duchamp para justificar inclusive a colagem de textos, o que eu considero um equívoco. Aqui, há também, como em colagens, o mesmo deslizamento quebrando fronteiras entre ficção-realidade; autor-leitor. A mesma agressão contra a prevalência do espaço sobre o tempo, prevalência esta que dominou o século XX. Duchamp já intuía a virada, agora ela acaba de vez. Mas, mais do que uma simples colagem, a descrição fotográfica muda o espaço em que ela se dá. As artes não andam parelhas. O que aconteceu com o museu do início do século XX pode estar acontecendo com este outro espaço, o do texto.
Falei sem parar de fotografia. É uma imagem mediada pela tecnologia, a atual,e é a primeira delas. Depois vieram as telas, todas elas. Isso não quer dizer que imagens “tradicionais” não fossem mediadas por tecnologias. Pincel era uma tecnologia para o homem das cavernas, a tinta a óleo para o renascentista holandês. Depois melhora. Ou piora, dependendo do ponto de vista. Mas tecnologias têm um período da vida em que olham para seu próprio umbigo. Todas elas. Quando isso ocorre, o espaço vai para o espaço. Não é mau. Quando o espaço vai para o espaço, isso quer dizer que a conceituação, o pensamento, por assim dizer, ganha status. Sem nunca esquecer que só conseguimos pensar sensorialmente, a partir de nossos cinco sentidos, emoções e tal. Mas, nessas épocas a que me refiro, elaboramos em cima. Nas outras, nem sempre. E sem nunca esquecer também que tais elaborações são sempre não confiáveis, não “verdadeiras”, são incompletas. Sempre. Mas enfim, é o que temos.
Falei sem parar de fotografia. Acho a fotografia, principalmente essa, feita por palavras, uma saída, o buraco por onde podemos respirar. Quanto mais amadorística, menos focada e com a cabeça cortada, mais o “eu” (o meu eu e o eu do receptor) estará em cena.
Vou citar Vilém Flusser:

“A práxis fotográfica é contrária a toda ideologia, ideologia é agarrar-se a um único ponto de vista, tido por referencial, recusando todos os demais; o fotógrafo age pós-ideologicamente.” (p.33-34)

Quando comecei a falar sobre narradores, para o vídeo do Études Lusophones (Sorbonne-Paris IV), falei muito de ruas e urbanismo. As cidades, assim como outros espaços que vimos aqui, mudaram de status na contemporaneidade. Viraram tempo. Os museus e as cidades e os textos, antes espaços estáveis e bem delimitados, viraram processos, potencialidades. Assim, a arquitetura e o urbanismo concebidos com parâmetros de funcionalidade e ordenação social acabaram. O romance com trama estruturada e funcional, eu acho que também.
Vou ler uns trechos de gente de quem eu gosto.

“Perguntassem – e perguntavam  – ao seu Valdomiro, no forró do Centro de Recreação do Idoso, nas caminhanças no Jardim Inamar, no palavrório bem-te-vi no centro de Diadema, o momento mais arco-de-triunfo da sua vida, ele, estalando de felicidade, responderia, despachado, o dia que tirei retrato para a formatura da quarta série, amplo sorriso rejuvenescendo a carapinha grisalha. E os olhos remexeriam os fundos dos fundos dos seus guardados, estufados envelopes pardos, carteiras profissionais e do INPS, receitas e atestados médicos, chapas e resultados de exames de urina e sangue, santinhos e números antigos da revista Placar, a carta lavrando a aposentadoria, a amarelada fotografia: sentado, braços debruçados sobre a mesa, à esquerda uma plaquinha, Grupo Escolar Padre Lourenço Massachi, à direita o globo terrestre, ao fundo, semienroladas, as bandeiras do Brasil e de Minas Gerais.” (Ruffato, p.15)

O Ruffato fez uma série. A “Inferno provisório”. Há uma artista contemporânea, a Jac Leirner, que também trabalha com séries. Na minha visão, de forma parecida. Séries sempre apontam para o fazer criativo. O tempo apontado é o das mínimas diferenças entre os exemplares que compõem a série. Portanto, a série aponta para o tempo da criação e sua instabilidade/obsessividade (ou estabilidade). O Ruffato e a Leirner, não. Entre as séries mais conhecidas da Jac Leirner estão a dos maços de cigarro e a das notas de cem cruzeiros. Os maços foram recolhidos entre o momento em que ela achou que devia parar de fumar e efetivamente parou. As notas de cem foram recolhidas entre o tempo em que foi anunciada sua retirada de circulação e seu efetivo desaparecimento das ruas. Então, a serialização é interna. É a diferença de valor entre digamos, o primeiro maço de cigarro que ela fumou achando que era o último, as notas já condenadas mas ainda abundantes, até que isso foi mudando aos poucos. As diferenças são do material empregado nas obras. Não nas obras. Ruffato nunca começou ou acabou nada. Seus livros começam assim, do jeito que eu li, e não terminam. A diferença também é interna. A série dele também aponta para um percurso cambiante do “material”, as classes pobres brasileiras. Que também vão mudando em sua vida fora dos livros. Não há uma busca de totalidade fechada. De exaustão.

O segundo trecho é da Luci Collin, professora de literatura da federal do Paraná.

“Me vejo andando um passo rápido que eu nem precisava me vejo tomando decisões e dizendo frases frases ridículas e comendo e bebendo pães e águas que nem gosto e declamando parágrafos frios parágrafos fictícios parágrafos inteiros que parece eu sempre soube de cor. E fazendo movimentos tristes com o corpo e pensando em multidões marchando dançando correndo fugindo e eu querendo ser.” (p. 36)

No meu primeiro texto sobre narradores, lido para o vídeo feito pelo Leonardo Tonus, falo que um dos meus recursos para quebrar a espetacularização da escrita é dizer sem parar o que faço. A Luci Collin mete seu narrador no livro em paralelo à história narrada por ele. É uma presença que diz o que faz. Também gosto muito.

Referências bibliográficas

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo, Brasiliense, 1994.
BÜRGER, Peter. Teoria da vanguarda. São Paulo: Cosac Naify, 2008.
CAUQUELIN, Anne. A arte contemporânea. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
COLLIN, Luci. Com que se pode jogar. Curitiba: Kafka, 2011.
FATORELLI, Antonio. Entre o analógico e o digital. In: FATORELLI, Antonio; BRUNO, Fernanda. Limiares da imagem: tecnologia e estética na cultura contemporânea. Rio de Janeiro: Mauad, 2006. pp.19-38.
FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta. São Paulo: editora Hucitec, 1985.
KEHL, Maria Rita. Imaginário e pensamento. In: NOVAES, Adauto. A rede imaginária. São Paulo: Secretaria Municial de Cultura, 1990.
RUFFATO, Luiz. Domingos sem deus. Rio de Janeiro: Record, 2011.