Escritas incômodas

Texto da palestra “escritas incômodas”  para programa da prefeitura de Belo Horizonte, em 19/04/2012.

 

 

Escritas incômodas

Primeiro, umas definições. Ou tentativas de. Por exemplo, quem a gente é. Produtores de bens simbólicos. Até aí tudo bem. Mas isso quer dizer o quê? Ou, melhor dizendo, isso põe a gente contra e a favor do quê e de quem quando tentamos fazer nosso trabalho, que é o de mudar algo que já existe.
Começando do grande para o pequeno em três degraus descendentes de considerações.
1) O uso de uma língua europeia em uma geografia não-europeia. Desdobramento desse ítem: o fato de o português ser uma língua europeia de segunda classe;
2) O uso dessa língua europeia de segunda classe em uma geografia não europeia que, piorando, às vezes é rotulada por um coletivo abstrato de nome “literatura brasileira”. Desdobramento desse ítem: o fato de haver formações literárias segmentárias dentro dessa “literatura brasileira” (como a literatura étnica, regional, de gênero e outras) e que exercem, essas literaturas segmentárias, uma relação tensionante dentro do seu conjunto abstrato “literatura brasileira”;
3) A diferença entre essa literatura feita em língua portuguesa e chamada de brasileira (eventualmente com um segundo adjetivo depois do “brasileira”, referente a seu segmento específico: brasileira feminina, brasileira fantástica etc.), e a vida literária real, onde entram traduções, tradições, produtos paraliterários importados ou impostos, oralidades, gestualidades e dramas que influenciam essa literatura (que já vem, coitada, com todos os poréns e adjetivos citados acima).

Esmiuçando o 1), ou seja, os limites da ocorrência do novo dentro do âmbito internacional, a partir da língua em que se dá a literatura:
Antes de mais nada, nunca esquecer que quaisquer demonstrações de interesse pela “nossa” literatura coincidem – sem que haja de fato coincidência alguma – com uma maior presença econômica de produtos brasileiros nas bolsa de valores e mercados financeiros de Nova York, Londres, Frankfurt, Tóquio. Fins dos anos 80.
Essa presença do capital econômico é necessária mas não suficiente para o fortalecimento de uma literatura “nacional”. É preciso haver, além disso, também acúmulo de capital simbólico. Massa crítica, por assim dizer.
Ao mesmo tempo, é preciso nunca esquecer que essa presença, literária & econômica, tem uma função, uma utilidade, dentro de um sistema global de forças, sejam elas literárias ou econômicas ou, como sempre acontece, literárias e econômicas. E essa função é a de trazer a mudança que faz com que o sistema sobreviva por mais um tempo. Mudança intra ou inter.
Assim: o sistema literário controla suas crises periódicas lançando mão do que existe em suas margens. É a mudança intraliterária.  Uma lateralidade. Por exemplo, a produção literária feita na mesma língua, mas a partir de outro grupo produtor. Ou o controle das crises se dá com a inserção da produção oriunda de outro sistema literário. Mudança interliterária. Poesia palestina underground. Muito, muito raro. Se fosse música seria menos raro.
As mudanças intra e interliterária não devem ser confundidas com a questão da heterotopia. Os “espaces autres” de Michel Foucualt. Aliás, heterotopia é  uma visão bastante superficial de mudança no fazer literário. Não é porque você ambienta o seu romance num hospital psiquiátrico, na cela de uma prisão ou na senzala do Brasil colônia que seu texto está trazendo alguma coisa de novo.

Esmiuçando o 2), ou seja, os limites do novo dentro dos já limitados conceitos de uma determinada nacionalidade/geografia:
Antes de mais nada, nunca esquecer que todas as línguas naturais e suas corruptelas ou dialetos geram uma forma de discurso que pode ser chamado de literário. Ou seja, ficcionalizante e estetizante. Ainda que não necessariamente escrito. Ainda que não necessariamente independente de outras manifestações simbólicas como músicas ou grafismos.
Assim como um livro de gramática da língua portuguesa não dá conta da língua portuguesa, a literatura brasileira não dá conta do não-sistêmico na literatura brasileira. Quanto mais rígidas forem as definições de gramática e literatura, mais coisa fica do lado de fora. Há um essencialismo aí, implícito, do qual é preciso fugir. A fuga possível se dá com a adoção de um modelo dinâmico de semiótica. Nunca esquecendo que modelos dinâmicos são exatamente isso, dinâmicos. Portanto, iniciam em um estado instável das forças estáticas, pré-existentes, frente a mudanças. E vão para uma estabilidade temporária ao desenvolver um sistema eficiente de adaptação e resposta a esses estímulos externos, ao novo. Há mesmo um estudo da Linda Hutcheon, uma linguista canadense, demonstrando claramente a relação entre progresso político e decadência estética. Quer dizer, você, escritor, pode até trazer um novo. Ele não ficará novo por muito tempo.

Esmiuçando o 3), ou seja, os limites do que é literário dentro de uma realidade que não o é:
Em 1973, outro acadêmico, o Raymond Williams, publicou na New Left Review um ensaio chamado “Base e superestrutura da cultura através da teoria marxista”. Nesse ensaio ele vai além do literário e entra no que ele chama de vida literária. Disse ele: “A hegemonia não é una. Na verdade sua estrutura interna é altamente complexa e necessita ser continuamente renovada, recriada e defendida; precisa mesmo ser desafiada e modificada em pelo alguns de seus aspectos, sem parar”. Aliás, ele nem gosta da palavra hegemonia. Prefere falar de dominância de um sistema de práticas culturais, produções de significados e valores, em determinado grupo social e em determinado período de tempo. É uma frase meio longa, então fico só com a palavra dominância. A dominância, em literatura e fora dela, é transmitida e defendida por grupos como famílias, locais de trabalhos e escolas. Esses grupos excluem com grande eficácia tudo que contradiz a dominância. Tudo que é difícil de engolir. Por exemplo, nós.
Excluídos, viramos então defuntos, resíduos ou emergentes.
Definindo essas três possibilidades:
Defunto some e você nunca mais houve falar. Resíduo fica lá no fundo da estante por séculos até alguém pescá-lo sem nem lembrar do nome. De modo que prefiro me estender na melhor hipótese. Emergentes.
Emergentes vêm em dois sabores. Alternativos ou Opositores.
Alternativos oferecem uma produção paralela à dominante. Textos que não atacam os textos dominantes, mas são assim uma espécie de segunda opção. Por exemplo: há uma certa literatura gay igualzinha à água com açúcar hollywoodiana convencional, só que o par protagonista é composto por homossexuais. Tem sua função desestabilizadora. Mas limitada. Absorvível. A mesma coisa com histórias de namorados adolescentes vampiros. Bem quadradinhos e românticos. Só que vampiros.
Os autores emergentes opositores, ao contrário, atacam a estrutura dos textos dominantes. Esse ataque pode ser no nível fonético, morfológico, sintático ou semântico. Ou nos quatro juntos. Sua principal qualidade, e defeito, é que esses autores não são previsíveis. Quando bem sucedidos, o que é muito raro, eles provocam uma quebra na lógica da causalidade marqueteira. Introduzem, justamente, a imprevisibilidade. São todos aqueles que, recusados por todas as editoras, acabam aparecendo, tendo seu valor reconhecido e deixando toda a indústria com cara de tacho. Ou, os que são incensados num primeiro livro que parece ser totalmente novo, só para se verem desmascarados em um segundo.
Em tempo, Opositores e Alternativos trabalham juntos. Um não vive sem o outro. É a existência de um que possibilita a ocorrência do outro porque só juntos eles mantêm abertas as brechas na dominância. E, olha, sem heroísmo. Fazem (fazemos) exatamente o que é esperado que façam (façamos). O que é preciso. É uma função. Apenas isso.
E, cereja do sundae. Não esquecer que o capitalismo é orientado para o consumo. O acúmulo desvairado e incessante de capital depende de uma coisa: o consumo. E o que é novo, ou que parece novo, é consumido.
Então, sendo brutalmente clara: emergentes são um fenômeno comercial também. A dificuldade sendo, é claro, saber se a gente é um novo que emerge em meio à linha literária dominante ou um velho recauchutado pela própria linha literária dominante.
Há outra dificuldade. A da recepção. E aí de fato entram aspectos bem distantes da literatura. Não importa se você é um novo-novo ou um velho recauchutado, você depende de como você é lido. O novo só é lido como novo se houver a participação implícita de um leitor igualmente excluído, não representado pela linha literária dominante.
E piora.
Você pode ser ou não um emergente. E, sendo ou não sendo, você pode ser lido como uma coisa ou outra, independente de sua intenção, posição ou vontade.
Então, você e seu leitor podem compartilhar o mesmo estatuto de excluídos. É o paraíso. Dois perdidos em um mundo sujo, paupérrimos, mas muito gratificados.
Ou não. Por exemplo, você pode ser um mainstream que só quer ganhar dinheiro e um louco qualquer descobre uma qualidade intrínseca altamente complicada no teu texto. Você vira “cult” e não vende mais nada. E começa a pensar em suicídio. Ou, também bem ruim: você pode ser um emergente legítimo e ninguém notar. Você será lido pelo que há de pior em você. E virará um mainstream ruim, porque nem isso você sabe fazer direito. Um exemplo clássico das duas últimas hipóteses é a leitura feminista de um texto que não tem a construção de gênero como preocupação. Ou você passa a ser considerado um homossexual reprimido ou, antônimo e igual, um bugre machista da pior espécie. E isso em detrimento de qualquer outra consideração que seu texto possa suscitar. É o que se chama de “leitura não-cooperativa”. Faço muito.

Então, resumindo. A gente, autores perenemente emergentes (emergentes como na água mesmo, ou seja, tentando ficar com o nariz de fora), não está aqui para fazer sucesso, embora, sim, o único motivo de se estar aqui é o de lutar pelo sucesso. Quer dizer: pode-se até conseguir fazer sucesso, mas principalmente, é preciso dar um jeito de existir. Porque se não existirmos, nós, os que estamos sempre do lado de fora, os difíceis, os intragáveis, sem nós, os da brecha, o resto todo desaba. O público depende de nós. E não o contrário.