Concomitância dos efêmeros (ou como ler os clássicos)

Texto da apresentação “Concomitância dos efêmeros (ou como ler os clássicos)”, em mesa com Charles Kiefer e Deonísio da Silva, 25/10/2012, XXVIII Seminário Brasileiro de Crítica Literária da PUC-RS; esse texto foi publicado posteriormente como artigo pelo suplemento Pernambuco #83, de janeiro de 2013.

 

 

 

 

Concomitância dos efêmeros (ou como ler os clássicos)

Vou falar por cerca de trinta minutos, sendo que os vinte e cinco primeiros serão de introdução. Quem leu qualquer livro meu sabe que esse é um dos meus péssimos hábitos. Nessa introdução vou falar como acho possível alguém ler clássicos hoje. E vou estragar tudo resumindo de cara a palestra inteira em uma única frase: a possibilidade de clássicos serem lidos hoje está na destituição do título “clássicos”.
Os cinco minutos finais serão mais pessoais. Vou dar um exemplo, dentro de um livro meu, de como minha escrita atual pode fazer referência a uma escrita mais antiga.

Sou escritora e desenhista.
Portanto, meu problema básico, cotidiano, é como lidar com o efêmero. Não só o meu efêmero de pessoa física, mortal. Mas principalmente o efêmero naquilo que faço. Preciso pensar muito, me esforçar muito, para descobrir uma verdade que integre nela seu próprio questionamento. Porque são as verdades questionadas as que aparecem na criação de hoje.
Tenho consciência de que se trata de falta de sorte.
Nem sempre foi assim difícil. Tínhamos uns absolutos à disposição. Primeiro, o absoluto-absoluto da metafísica e da transcendência e aí não havia dificuldade alguma. Era só esquecer todo o resto – isto é, as pessoas e o mundo – e partir para o que de fato interessava, e durava: o céu. Representado sempre como uma superfície chapada em dourado ou branco, muito fácil de fazer, atrás das figuras em primeiro plano, todas elas iguais, portanto também fáceis de fazer. Não se tratava, então, de estabelecer diferenças de narizes e bocas, nuvens ou constelações. Não se tratava de estabelecer, nem muito menos de viver, diferenças.
Depois veio o Moderno. E no Moderno já houve a primeira piora nesse nosso ofício de apontar relevâncias, irrelevâncias e significados de relevâncias e irrelevâncias. No Moderno não tínhamos mais a alucinação de um absoluto-absoluto para nos servir de amparo contra o efêmero em que vivemos. Mas ainda não estava de todo mau. Tínhamos uns absolutos meia bomba. Uns absolutinhos.
Vinham em dois tipos.
(Um aparte. Moderno é um termo vago. Cobre um tempo muito grande. Vou me ater ao século XX, e ao século XX como o entendeu o historiador Eric Hobsbawm, isto é, até a queda do muro de Berlim, anos 80. )
Mas, eu dizia, os absolutos meia bomba do Moderno vinham em dois tipos.
O primeiro é um absoluto não mais enorme, celestial, mas ainda assim bem grande: o absoluto das grandes estruturas modernas. Terrenas, concretas. Ou mais ou menos terrenas e concretas, já que elas só se mantinham em pé através dos velhos truques de ocultação e adiamento. Estruturas platonicamente ocultadas por trás de suas manifestações observáveis; estruturas messianicamente realizáveis apenas no futuro longínquo. Como exemplo, uma estrutura que marcou nossa prática profissional de fazedores de bens simbólicos, o construtivismo.
O segundo tipo é o dos absolutinhos. Pequenos, mas em multidão, seja na reprodução industrial de objetos em série ou na explosão demográfica de humanos, também serializados. E todos – objetos ou pessoas – considerando-se e sendo considerados autossuficientes, completos, acabados. Nítidos. Eram o sujeito moderno, suas obras e suas certezas absolutas. O criador Moderno, ao contrário do criador contemporâneo, se via e era visto como uma unidade. Autônoma. Capaz, portanto, de atos de autenticidade  que atendiam a um anseio de liberdade, nunca satisfeito, e que resultavam em estilos. Estilos próprios. Novos. Se viam assim: novos. Um depois do outro, um vindo para aniquilar o outro. Mas todos se achando novos apesar da repetição de desempenhos.
Ainda não convivíamos bem com diferenças. Nem as sincrônicas, sempre hierarquizadas, nem muito menos as diacrônicas. O passado era sacralizado ou execrado.
É o que o Contemporâneo vai mudar. Vai mudar até mesmo a ideia do que seja  diferença. E essa mudança vai se dar no espaço.
(Antes vou reiterar uma coisa que vocês já sabem, mas que eu preciso escutar até mesmo para me desculpar a mim mesma da minha pouca precisão. Não sou teórica. Penso no que faço, mas primeiro faço. Então, isso aqui vem de uma observação e de uma prática, ambas muito limitadas, bem pouco esclarecidas e com certeza não isentas, no campo da arte e da literatura. O que me consola dessa minha temeridade é que tenho apoios. No seu último livro Grande Hotel Abismo, Vladimir Safatle fala um pouco sobre essa tolerância contemporânea a uma suspensão de princípios formais de organização na criação estética de hoje – e no pensamento.)
O Contemporâneo, então.
Antes, mais do Moderno.
No Moderno eu era um, ainda que, no final, um Um estilhaçado, fragmentado. Mas meus vários pedaços se excluíam, não conviviam e mantinham assim sua nitidez, sua suficiência. Citando um exemplo que me dediquei a analisar no meu “Nada a dizer”: eu era um sujeito com meu amante, outro com meu marido, um terceiro no meu ambiente profissional e por aí vai. Esses vários espaços, em que esses vários eus viviam, eram estanques. Meu processo de formação de significado se dava mais por impactos imagéticos do que por tentativas de narrativa. Eu sofria um impacto aqui, outro ali. Os três passos que eu precisava dar entre um impacto e outro não eram considerados importantes. O que estava em volta de mim também não. O Outro, o diferente de mim, tinha uma serventia muito clara. Servia para eu me reagrupar, temporaria e periodicamente, em um Um. Não que esse Outro existisse, portanto, num mesmo espaço. Ao entrar no mesmo espaço que eu, ele virava um apêndice, uma projeção, até sua rápida absorção/rejeição.
Uns exemplos que todo mundo conhece: as gravuras populares japonesas, ou a estatuária de origem africana na Paris dos anos de 1860. O intuito desse confronto era ainda uma totalidade.
A mesma coisa com a leitura dos clássicos. Textos canônicos seriam vistos como contendo qualidades intrínsecas, uma essência de qualidade, imutável. Caberia a mim descobrir tal qualidade intrínseca, e levá-la ou não em consideração. Não a levaria, provavelmente, porque o Moderno passava o buldozer em cima de tudo, ideias, cadáveres de etnias não assimiláveis ou velhos centros urbanos. Escritor, ao pôr o ponto final no meu livro novo, eu acharia que a história estava ali completa, feita. Leitor, ao pôr as mãos em um livro antigo, eu acharia que aquele livro era o mesmo que meu professor leu, um exemplo de excelência literária. Ou seja, o tempo eterno das essências se manteria prevalente ao tempo da experiência estética.
Foi isso o que mudou.
E que atinge diretamente a leitura dos clássicos.
Assim: 1) Hoje convivemos com diferenças não mais vistas como diferenças radicais, mas como possibilidades de mim, outras normatividades ou mesmo uma possibilidade de a-normatividade; 2) Essas possibilidades de mim são expressas em temporalidades de diversas durações, que convivem em um mesmo espaço, presentificadas sem cessar e não hierarquizáveis; 3) Esse espaço do presente é ator a ser considerado no jogo da produção de sentido; 4) Porque esse jogo não supõe certezas finais, é imprevisível e sequer tem regras, eu jogo mais devagar, sem pressa por conclusões em que não acreditarei. Se eu tiver de mudar de profissão e virar pitonisa, eu diria que o século XXI vai passar mais devagar.
Então, voltando: no espaço sem absolutos, mesmo os disfarçados, que é o espaço do Contemporâneo, o entorno contingente passa a ser levado em conta na experiência estética. Ela não mais depende de um manifesto prévio, de uma essência ou texto pré-existente, de uma caracterização de excelência do objeto artístico ou mesmo da erudição dos atores envolvidos. A experiência estética é algo que acontece, e o que está em volta faz parte dela.
E isso quer dizer que posso, hoje, ler algo lento, algo cuja trama quase inexiste ou é não sequencial, porque hoje vivo bem com o efêmero. Não, isso é exagero. Não vivo bem. Consigo tolerar o efêmero. E consigo isso porque os efêmeros do meu espaço são muitos, e cada um tem uma duração diferente. O que me dá a sensação, temporária e necessária, de que há efêmeros menos efêmeros do que outros. Não chega a ser um absoluto, mas quebra o galho.
Falei que no Contemporâneo o espaço muda. Devia ter usado o gerúndio. Não há profissão mais adequada aos dias de hoje do que o telemarketing. “Eu devia estar falando que está mudando.”
Vou dar uns exemplos.
Em todos ele, eu falo um pouco mal do Moderno. Digo que é um período de autoritarismos, certezas estanques. Falo mal do Moderno, é claro, em comparação com o que observo na arte e em alguma literatura contemporânea. Na verdade o Moderno foi um período de luta para conseguir o que talvez a gente hoje consiga. Sou uma otimista irrecuperável.
Falei há pouco dos artistas concretos. Estão na minha cabeça por causa da Trigésima Bienal de São Paulo, cujo curador é ligado a este movimento do Moderno. Entrando na Bienal, se veem várias estruturas, umas duras, outras moles, e vários ataques a estruturas. Ou seja, obras que, ainda pelo sinal da negatividade, giram em torno de estruturas. Isso hoje, quando você tem o imprevisível da física quântica explicado em revista de quadrinhos. O tipo de experiência estética que esta Bienal propõe, de classificação clara, quase didática, em conjuntos definidos de artistas; o prédio em que ela está, no Ibirapuera de São Paulo, com sua escala grandiosa que me exclui ou me controla (eu devo subir a rampa); e o conteúdo proposto, de estruturas ou de antiestruturas, não me atendem. Eu, hoje, para me expor a uma experiência estética, não quero mais andar na frente de objetos artísticos feitas por pessoas chamadas artistas, em um prédio destinado a exposições artísticas. Eu não fico mais no papel controlado e submisso de fruidor. Não reconheço especificidade alguma, prévia, no que me é proposto. Não acho que artista seja alguém muito diferente de qualquer outra pessoa. Não acho que o espaço em que encontro arte precise ser separado do espaço comum, pelo contrário. E não acho que haja divisões claras entre tipos de atuação artística (visuais, sonoras) ou mesmo materiais específicos para ela (mármore, cera de abelha).
Isso inclui textos.
Posso ter, hoje, uma experiência estética com um tuite, feito por qualquer um, a respeito de qualquer coisa, e isso na tela do meu computador. No computador porque não tenho smart phone, porque se não, era no telefone.
Não aceito tentativas de direcionamento e também não as proponho.
Mais uns exemplos.
No cinema.
Viável a partir de 1890 e presente em todo o Ocidente, o Nickelodeon foi um sucesso popular absoluto. O processo dependia de uma imersão no escuro para a construção de um mundo paralelo, desvinculado do mundo em que se assistia ao filme. O filme tinha conteúdo claro, de recepção controlada. O trem vinha. As pessoas se assustavam. A mocinha desmaiava.
Vi há poucas semanas a instalação do inglês Isaac Julien, com nove telas, cada uma delas passando um trecho diferente de uma mesma narrativa videográfica. Não há imersão no escuro. O ambiente da instalação, no Sesc-Pompeia de São Paulo, faz parte integrante da obra, assim como o caminhar sem direção dos que entram no recinto.
Entre o Nickelodeon e a instalação do Isaac Julien, vem o cinema Moderno. Peter Greenaway, por exemplo. Pego especificamente seu filme Prospero’s books, baseado na peça A tempestade, de Shakespeare, em que a tela é dividida em vários pedaços independentes. A diferença entre essas três obras está entre 1) a imersão em uma experiência fechada, conduzida exclusivamente pelo aparato industrial produtor do filme no Nickelodeon; 2) o oferecimento de uma experiência ainda fechada, mas de fragmentação, de Greenaway; e 3) a experiência de coautoria e de narrativa aberta, efêmera e não repetível, de Julien.
Ao contrário de Greenaway, Julien não faz uma espécie de análise cubista da imagem em movimento. Não pretende destrinchar as possibilidades multifacetadas da visualidade. É outra cabeça. A construção sintática, no caso de Julien, é feita ali na hora. Não é repetível. Há um punctum, uma intensidade, não mais dependente apenas dos atores do encontro estético, mas na própria condição de sua efemeridade. A desaparição está incluída na obra de Julien. A dúvida. São rastros, aquilo na tela. Somos.
A instalação de Julien a que me refiro se chama Ten thousand waves e tem o mesmo tema explícito do filme de Greenaway: naufrágio e remissão. Julien usa material documentário. É uma constante desse artista em particular, e é uma constante da arte contemporânea. Julien pega documentos de ordem pessoal, social ou geográfica, no que ele chama de sua geopoética. Esta instalação, por exemplo, se refere a viagens de emigrantes de uma etnia chinesa paupérrima, com os naufrágios frequentes nesse tipo de situação (que se repete com haitianos, africanos). Nesse uso de material real, biográfico, está patente aquilo de que falava há pouco: a importância do entorno, do espaço, dos vários tempos que convivem dentro desse espaço. Esmiuçando os vários tempos nessa obra em questão : 1) o tempo dos fatos ocorridos na realidade; 2) o tempo da criação/documentação de Julien; 3) o tempo do encontro estético entre obra e quem foi lá ver.
A escultura hoje também usa objetos reais, de uso pessoal, documental. A música também, ao recriar espaços sonoros a partir de ruídos cotidianos. E a literatura fala da banalidade, dessa vida medíocre tão democraticamente encontrável em todos nós.
Essa importância do espaço do entorno é o que deu título à minha fala: é uma concomitância de efêmeros.
Tem mais um tempo naquela lista que fiz: o efêmero futuro. Arte hoje só é definível por suas consequências. Se aquilo – seja lá o que for e onde estiver, feito por quem quiser – provoca uma vibração, uma modificação nos atores presentes, ou seja, se tem um tempo que se estende num futuro, é arte. É a única maneira de saber. Se houver uma mudança em você e naquilo ali na tua frente, bem, sorria, você acaba de ter uma experiência estética.
Não que a coisa em si, um livro, por exemplo, mude. Imagine. Dom Casmurro continuará Dom Casmurro sempre, tirando, é claro, os insultos periódicos das várias reformas ortográficas do nosso país. O que muda é nossa percepção do que é um clássico. Sem sacralizar mais nada, nos enxergamos como rastros que passam, como vestígios em andamento e em renovação constante. E tratamos da mesma maneira as presenças – estéticas ou protoestéticas (porque meio que tudo pode ser considerado protoestético) desse nosso espaço do entorno. Espaço, claro, sem fronteiras fixas, feito e refeito. Dom Casmurro não é sagrado com certeza, mas não é sequer acabado. Junto com ele vem quem fala, de onde fala e quem recebe. Ou melhor, quem faz junto.
Mais um exemplo. Manet.
Ele punha um vermelho aqui, um verde ali. Não negociava o vermelho com o verde. Punha em seus quadros as cores, objetos, ia pondo. Um acúmulo capitalista. Cito o crítico Élie Faure.

 

“Essa supressão quase completa de uma passagem, de uma repercussão íntima do tom no tom vizinho, confere à pintura de Manet algo de descontínuo, de contrastado.” (FAURE, 1991, p. 353)

Depois, na sequência do artigo, Faure vai falar que os quadros do Manet se parecem com naturezas mortas, em que vão sendo jogados objetos variados, um nada tendo a ver com outro. Manet, um Moderno, provavelmente via sua vida como uma série de impactos desconexos, sem necessariamente levar em consideração a ligação, o contexto. E fazia a mesma coisa na sua pintura. Há o verde. Há o vermelho. São dois absolutos. Um não conversa com o outro, um não se modifica com a proximidade do outro.
Mais um exemplo, este no urbanismo.
As cidades planejadas, controladas, de que o século XX foi pródigo. Nada lhes falta. Tudo lhes falta. Por exemplo, Brasília. Aqui, hotéis. Ali, escritórios. Acolá tintureiros. Jardins, em geral em zonas não centrais. Essa arrogância de determinar a vida dos outros sem levar em conta justamente os outros, e a vida, deu nas periferias violentas, todas com nome de Jardim. Jardim Ângela, Jardim Miriam, Jardim São Luís, e outros da periferia de São Paulo. Nasceram em 1900, graças ao inglês Ebenezer Howard, o inventor do bairro proletário. Um urbanista Moderno.
Outro exemplo: arte gestual ou escrita automática. À primeira vista parecem exemplos de liberdade e o são, de maneira limitada. Aliás, o Moderno tinha obsessão com exercícios de liberdade. Freud explica: quando mais o sujeito se constitui de forma rígida (abandonando possibilidades ameaçadoras à sua integridade e controlando rigidamente as que consegue absorver) mais precisa de rompantes de autenticidade, vistos como liberdade. Só que o gestual desse sujeito Moderno continuava dentro do quadrado de um quadro, à la Pollock. Ou, na poesia, a própria quebra da lógica autoritária que permitiria o aparecimento de sinapses mais soltas era apresentada como verdade. Com direito a manifesto poético e tudo.
A pesquisadora da UFMG, Marilia Librandi, hoje ensinando em Stanford, tem uma monografia em que fala dos nambiquaras e do perspectivismo ameríndio. Sua  hipótese é que o modo de enxergar o outro no espaço desses índios é o modo prevalente na arte e literatura de hoje. É interessante porque – e vou falar disso mais adiante – o contemporâneo se estabelece com mais sucesso sempre que o Moderno falha.

Participei, em 19/09/2012, do Fórum de Literatura Contemporânea da UFRJ, em uma mesa com o professor Godofredo de Oliveira Neto e o tradutor Paulo Henriques Britto. O tema era “Recepção dos livros brasileiros no exterior”.
Minha fala foi mais ou menos o seguinte.
Clássicos, assim, sem adjetivo redutor, é um sinônimo de “estrangeiro”, para nós. Cânones são uma imposição de centros de poder e têm a função de manter esse poder. Digo, têm a função de manter a estrutura abstrata de poder, ainda que os centros mudem com o tempo.
O Moderno, para nós, também foi uma imposição dos centros de poder. Já falei aqui das características mais marcantes de sua produção simbólica: não leva em conta o entorno; não considera a coexistência de temporalidades; vê o Outro como um diferente radical etc.
Quem não viveu o Moderno e seu cânone plenamente, ou seja, nós, se vê melhor no Contemporâneo. Quem vive efêmeros diferentes num mesmo espaço desde sempre está à vontade hoje. Reduzindo o foco para o tema da mesa: a leitura dos clássicos é feita muito melhor por nós, que nunca fomos muito Moderno, do que por outros, que inventaram o Moderno. Aliás, a leitura dos clássicos e a dos contemporâneos. Nós temos a abertura necessária para o diálogo com outras possibilidades de nós. E temos porque já tínhamos.
Não se trata de elogiar. Conseguimos isso por causa de pobreza extrema, ignorância, religiosidade dogmática. Então, não. Mas é uma vantagem.
No Moderno, o cosmopolita era o cara rico que podia fugir da guerra ou viajar por prazer. Culto, ele ao viajar se tornava palestrante ou professor convidado nas universidades dos Estados Unidos e das poucas capitais europeias ainda fora do cenário de guerra. Alguns vieram até aqui. Vinham ensinar. Não aprender. Nós aprendíamos. Hoje continuamos aprendendo. Ou melhor, apreendendo. Somos nós que viajamos. Fisicamente, emigrando, ou só na cabeça, que continua aberta.
Vou citar um Nietzsche de segunda mão, a partir do livro The age of Empire – 1875-1914, do Hobsbawm lá do começo. Só tenho uma versão em e-book, então não vou dar o número da página.
“O espírito alemão de 1888 marca uma regressão em relação ao espírito alemão de 1788. A cultura parece se reduzir à mediocridade tentando se consolidar frente ao predomínio dos excêntricos e das turbas, que em geral se aliam.”
Podem até não me chamar mais de turba ou excêntrico. Não seria aceitável no politicamente correto dominante. Mas continuo sendo o Outro deles e até de mim, como prova qualquer visita a qualquer livraria, francesa, inglesa, alemã, americana e mesmo brasileira.
Tem uma coisa que me irrita. A publicação de um livro brasileiro contemporâneo no exterior é considerada por muitos conquista profissional. Exterior passa a não designar mais um lugar, mas um tempo. E tempo messiânico. Ser editado no exterior é chegar à Era da Justiça. O momento em que um Dom Sebastião me declara como sendo uó do bobó, com o mundo inteiro tendo de bater palmas.
É um resquício do Moderno, de um de seus absolutinhos, como eu já disse.
Lemos clássicos e contemporâneos hoje sem muita distinção. Também não distinguimos brasileiros e estrangeiros. Entra tudo. Isso nós. A leitura de um europeu – e nem vou falar dos americanos – não é assim. Parte de um pressuposto da diferença. É uma leitura que me interessa pouco, tem pouco potencial de encontro.
E mais um detalhe. Exterior a quê? O contemporâneo inclui a internet. Ok, internet em português. Mas são porosas as línguas desse espaço. Eu falo em português, comentam em outra língua, todo mundo entende todo mundo um pouco, adivinha o resto e vai em frente. Isso em relação ao quesito fronteiras. Quanto ao tempo presentificado da internet, vou falar dele daqui a pouco.
Também daqui a pouco, no fim da palestra, vou ler um trecho de livro meu que faz referência, por ser seu total antônimo, aos romanções ingleses presentes no cânone do século XX. Aqueles de quinhentas páginas. Começo, meio e fim de uma história completinha. Na terceira pessoa.
Custei um pouco para entender isso, a prevalência da terceira pessoa nesse tipo de livro. Não sei se consegui.
Acho que é por causa do sujeito, como ele se via no Moderno. Não era um sujeito pessoal, por mais estranha que seja essa frase. Tão autossuficiente, completo em si mesmo, tão sem levar em conta negociações e presenças em seu espaço raso, nítido, esse sujeito só podia ver o mundo e se descrever a si mesmo, do alto. Daí a terceira pessoa.
Sou vacinada contra arrogância. A contemporaneidade é. É o que difere esta virada de século da anterior. Há cem anos, estávamos nas Vanguardas. Pretendiam ser o epítome da arte autônoma, independente de tudo. Viraram inspiração, naquela estética típica de blocos pretos e linhas retas, ao nascente desenho industrial. Mais um pouco, se tornavam o feijão com arroz de peças publicitárias futuristas. Um fim tristíssimo, embora bem merecido. Esse perigo, a gente não corre. Não o de virar propaganda. Esse corre. O de achar que não vira.
Tenho mais uma dúvida, além daquela de como ver a terceira pessoa narrativa no auge do individualismo capitalista.
Minha segunda dúvida é se esse espaço contemporâneo que aqui descrevo, com suas várias temporalidades, é uma temporalização de espaços ou espacializaçoes do tempo. Desconfio que seja temporalizações de espaços.
Acho que o Moderno era espacializaçoes do tempo. O tempo congelado em momentos unos, estanques. O tempo passava, por assim dizer, escondido ou muito rápido, entre impactos. Era um viver imagético, não narrativo, feito de cenas, quadros, flashes. Uma existência entendida por clarões de luz. Vitrines. Sem contexto, sem pega.
O Moderno foi a era da imagem. O Contemporâneo é a era do tempo. Dos tempos. Plural. Coexistem em um mesmo espaço feito e refeito, cujos horizontes mudam sem configurar limites fixos.
Citei há pouco a internet como um exemplo desse espaço sem limites fixos. É um bom exemplo também para os tempos presentificados que observo nesse e em outros espaços atuais. Por exemplo, a linha do tempo do Facebook. Os arquivos por data dos blogs e twitters. São diários. É a vida não mais como conjunto de acontecimentos, mas como uma narrativa.
Pense num botequim. E, nesse pensamento, lembre que botequim é um dos grandes não-lugares da literatura masculina do Moderno. Literatura masculina do Moderno é um pleonasmo aqui da minha parte. O Moderno foi masculino.
Bem, botequim é, então, um desses cenários em que, por haver suposição de não vínculo prévio entre os atores presentes, por haver um estar instantâneo, não integrado em narrativas, pode ocorrer o estar-no-mundo Moderno por excelência: o estar de impacto, desvinculado, absoluto e nítido em seu contorno. Tudo que acontece ali fica ali. Só que, hoje, esse botequim – a internet – lembra tudinho que você falou ontem. E anteontem. Você tem lá, presente, a besteira da semana passada, que pode receber, e recebe, um comentário hoje. É uma besteira presentificada a todo momento. Isso muda o masculino. Muda o botequim. Muda a literatura. Frases como “sei lá o que fiz ontem, não lembro de nada”, seguidas de risadas. Ou: “como se não houvesse amanhã”, e mais risadas. Isso acabou com o Facebook. Tem o amanhã. Tem o ontem. E quando não tem um anteontem assim um pouco mais antigo, as pessoas produzem um, no instagram.
Passagem do tempo é algo medido internamente, e a partir de uma espera. Quero algo, e o tempo é então medido entre a instalação da minha falta e a obtenção – ou desistência – daquilo que me falta. Isso é para frente. O tempo medido, ou melhor construído, sob o nome de futuro. Mas a primeira palavra da frase “quero algo” supõe um sujeito que quer. E esse sujeito é formado para trás, o passado. Eu sou eu porque alguns dos meus efêmeros duram mais do que outros e, embora sempre em mudança, me permitem reconhecer, mal e mal, e sem contorno determinado, algo que chamo de eu. Vladimir Safatle, já citado, tem um termo que gosto muito: retrato difuso. Me remete ao Gerhard Richter e seus enormes quadros fora de foco.
Vivemos uma espécie de Renascença. Um sfumatto generalizado. Lá também (e veja que eu falo “lá” para um tempo que penso como “lugar”) houve uma temporalização do espaço. No pensamento anterior, o medieval, o espaço eram dois, bem separados. O humano, das figuras em primeiro plano, centralizadas. E o espaço infinito dos fundos dourados ou brancos. O tempo que o sujeito levava para ir de um para outro acontecia fora do quadro – e da vida, já que para isso era necessário morrer. Na Renascença, inventa-se a perspectiva e você passa a andar, um passo depois do outro, uma ondinha de mar depois da outra, até o horizonte, pintado sem muita clareza, no meio da bruma. O espaço é um só e há um tempo, linear, sequencial, direcionalizado, para desenhar esse espaço. São Jerônimo pregando no deserto, tanto o de Leonardo quanto o de Veronese, por exemplo. Tem o deserto, tem o São Jerônimo. Velhinho, acabado, lá no meio das pedras. Mas, sabemos, o São Jerônimo vai durar mais do que a pedra. A pedra, lá presente como avatar da nossa existência terrena, vai caminhar o passo a passo de seu andar de pedra até, quem sabe, chegar na eternidade daquele velhinho.
Estamos hoje outra vez em um único espaço. Para compensar a falta de São Jerônimo e sua direcionalidade, temos vários tempos. Pulamos neles, como se fossem blocos de gelo, buscando nos equilibrar naquele que derrete menos depressa. E assim aguentamos a única certeza que sobrou, que é, como já disse, a da concomitância dos efêmeros. Até mesmo na escala da astrofísica e de seus universos paralelos.

Cheguei nos cinco minutos finais.
Vou ler um trecho do meu livro Deixei ele lá e vim, de 2006. O personagem não tem nome fixo, é Bubi, Bibi, vai mudando, não estranhem.

“No quarto, Bubi. Diz que precisamos esperar alguém com um boletim de ocorrência que assinaremos. Diz que ficou contente ao perceber que a morte de Dô foi dolorosa para mim. Minha reação afastou sua suspeita de eu ter tramado esta morte desde o início.
Não tem como saber que tramo mortes a três por quatro e que são sempre a minha, mesmo quando não sei disso.
Está sentado na mesma poltrona de antes. E eu no mesmo ponto da cama. Meu dinheiro continua jogado. Não quero contar. Nem dinheiro nem histórias.
Pergunto, então, antes que ele possa abrir a boca.
“O que aconteceu?”
Quero algo que eu já conheça. Romances do século XIX com começo, meio e fim claramente apresentados. Preferiria em lugar distante. Inglaterra. Quero o que eu não conseguiria dar. Eu a contar e seria história cortada, com pedaços espalhados em grande planície. Ou praia. E o esforço de ir de pedaço a pedaço. Não dá para fazer esforço. Às vezes não dá, é preciso saber disto.
Peço:
“Vai. Desde a hora em que saí da piscina.”
E que inclua, na sua voz baixa e por muito tempo, todas as outras histórias, mesmo as de depois de eu ter saído dali, desse mundo, momento e quarto. O que, aliás, planejo fazer assim que der. Tem uma coisa que eu sei, preciso fugir.
Mas ele tira minha roupa, e tem menos pressa ainda do que da primeira vez. E, como antes, não faz micagens ou expressões significativas. Só desabotoa botões, desce zíperes, puxa panos para baixo ou para cima. Depois tira sua própria roupa. Depois, fecha as cortinas antes que eu me sinta em algum palco iluminado por estreito foco de luz.
Deita-se ao meu lado. Sua chegada é lenta e sem estardalhaços. Só vem. Como vêm os tratores.
Gozo uma vez mas isto não parece alterar em nada aquilo a que se propõe. E depois de tudo acabado, ainda, louca e, agora sim, em praça pública, gozo outra vez
Ele ri.
E eu fico com a sensação de perigo que sempre me dá quando a segunda trepada com um homem é melhor do que a primeira. “

Leio o romance estrangeiro que se passa na Inglaterra sem necessariamente gostar. Mas gosto de ter lido. É uma das presentificações que acontecem no meu espaço cheio de tempos. O romanção inglês não é mais nem menos importante do que qualquer outra coisa. Vai durar presente em mim o tempo que for, sem que eu me esforce para mantê-lo ou exclui-lo. E vai aparecer aqui e ali no que faço, imprevisível.
Se eu curto os livros clássicos? Curto. Alguns. Nem sempre por inteiro. Recomendo Cervantes. Engraçadíssimo. Umas partes meio chatas que dá para pular. Tem na internet. É só baixar.

Referências bibliográficas
FAURE, Élie. A arte contemporânea. In: A arte moderna. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
HOBSBAWM, Eric. The age of Empire: 1875-1914. Londres: Weidenfeld & Nicolson, 2012.
JASMIM, Marcelo. Futuro presente. In: Novaes, Adauto. Mutações: o futuro não é mais o que era. Rio de Janeiro: Artepensamento, 2012.
LIBRANDI-ROCHA, Marilia.  Escutar a escrita: por uma teoria literária ameríndia.  In: Eixo e Roda # 21, n.2, pp. 179-202, julho-dez. 2012. Belo Horizonte: UFMG, Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários.
SAFATLE, Vladimir. Grande Hotel Abismo. São Paulo: Martins Fontes, 2012.
VIGNA, Elvira. Deixei ele lá e vim. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.